IFF Berlim 2012

Posted on 2/20/2012 by UNITED PHOTO PRESS MAGAZINE

20122884_5_IMG_700.jpgMéliès haveria de sorrir

Com Murnau, de “rosebud” a “Up”. Uma aventura no cinema.

E se tabu fosse afinal uma conceção perversa que temos do cinema? Do efeito espetáculo das imagens em movimento, da emoção fácil? Mas “Tabu”, agora como título, pode também ser uma imensa ironia de tudo isso. Talvez a forma mais livre de celebrar toda a herança do cinema, em geral, e de Murnau, em particular. Cinema de aventura, documentário, “home movies”... A preto-e-branco. Mas tudo trabalhado de acordo com uma perspetiva de fantasia, de sonho, de memória. Numa semana em que chega às salas “Hugo”, de Scorsese, com a celebração do cinema onírico de Méliès, já sob o efeito do celebrado e mudo “O Artista”, espalham-se também os ecos de Berlim com a novidade de “Tabu”, o filme que mais seduziu a 62ª edição. Já com o prémio FIPRESCI, atribuído pela critica internacional. Mas antes ainda do Urso de Ouro.

A ganhar será a consagração do cinema de autor, da cinefilia, e a derrota do cinema “boxoffice”; se ganhar outro, ficará sublinhado o papel da crítica. E talvez de uma vontade (leia-se predisposição) para encarar o cinema (também) como uma forma de arte. Já o é há mais de 100 anos. Ora, Miguel Gomes celebra toda essa fantasia. E nós agradecemos.

“Mas Tabu” não pretende ser uma homenagem ao cinema mudo, como esclareceu Miguel numa entrevista de grupo em que participámos, em Berlim, é mais “uma reflexão do cinema e em particular do cinema americano clássico”. Sim, percebe-se a herança do cinema de aventuras dos anos 30, mais seguramente de Murnau, já depois de fugir do nacional socialismo e de se exilar na América. Temos de facto muito Murnau em “Tabu”. Desde logo na escolha idêntica do, aquele que foi o opus tropical do cineasta, realizado em 1931. Também uma divisão de partes semelhante – “Paraíso” e “Paraíso Perdido” -, mas talvez ainda mais importante, o nome Aurora para a protagonista (Ana Moreira, em jovem, em Laura Soveral, na atualidade), naquele que é o título de um dos mais belos filmes de sempre e a obra-prima absoluta de F.W. Murnau, produzido em 1927. É claro que toda esta inspiração acaba por ser emaranhada por um conjunto de ideias que parecem formadas de acordo com um projeto em crescendo de escrita criativa. Um cinema como fonte de emoções, várias, mesmo que não logicamente tecidas.



O filme começa com o que parece ser um registo documental, de época. Um barbudo explorador português seguido por um pequeno séquito avança pela savana africana até um encontro anunciado com um jacaré num lago onde cumprirá uma profecia e um destino de amor. Tem o sabor delicioso e o aperitivo de uma curta, bem dirigida por Gomes e filmada com carinho especial por Rui Poças (que tem, de resto, um trabalho notável em criar a espessura histórica de todo o filme). Depois desta espécie de prelúdio, temos então o filme (a “feature”, digamos); temos ainda os bigodes de época (uma regra imposta por Miguel Gomes – a outra foi a bebida oficial, gin tónico), e a tal história de um amor perdido em África. Sim, e um jacaré, sim e o “Baby I Love You”, do Phil Spector, versão The Ramones, tocado à beira de uma piscina com água morta por uma banda de salão dos sixties. Inesperadamente, de época.

Pelo meio, ganha espessura o presente de Aurora (grande trabalho de Laura Soveral), esclerosada, dependente da cabo-verdeana Santa (uma cozinheira de profissão, mas com participação regular nos últimos filmes do Pedro Costa), e à procura do sonho perdido no jogo do casino do Estoril. E também o momento Rosebud dela: Ventura, a paixão abortada com meio-século. Sim, é um cinema lento, pesado, denunciado. O nosso cinema português. De autor, sim, de Cinemateca, sim. Henrique Espírito Santo (Ventura atual) narra a sua própria história, e a de Carloto Cotta (Ventura de então), apelidado de “Errol Flynn”, pela Variety. Essa é a melhor parte de “Tabu”. A chegada ao monte Tabu, um “set” encontrado algures na província da Zambézia, junto à fronteira do Malawi “onde nunca tinha entrado uma câmara”. A veracidade deste e de todas as imagens deste segmento são do melhor que vimos no cinema português. São verdadeiros filmes de época, filmes de família, documentários, esboços de filmes de aventura. Vem-me subitamente à memória o segmento nostálgico de “Up”, da Pixar, sem saber porquê. Será pelo romance, será pela emoção, será por isso tido? A única razão é por se perceber a paixão do cinema, da aventura do cinema.

A certa altura na entrevista em que me intrometi em Berlim - o grupo era de jornalistas brasileiros, Miguel Gomes serve-se da primordial divisão entre o Lumière e Meliés, para se confessar “muito mais próximo da fantasia de Meliés do que do realismo de Lumière”. Pois bem, Miguel, Meliés haveria de sorrir com o teu “Tabu”.

Paulo Portugal