Arte vendida

Posted on 12/15/2009 by UNITED PHOTO PRESS

Estive em Londres na semana passada e, toda vez que vou para lá, quando sobra algum tempo, procuro dar uma olhada no que acontece nas artes e nos espetáculos. Porque a capital britânica é um dos sismógrafos culturais do mundo (São Paulo também é). O que ela detecta acaba por se espalhar pelo mundo. A novidade é que o interesse do público londrino pela arte contemporânea anda crescendo muito. Até mesmo a ala conservadora acha chique hoje visitar exposições.

Três em especial tiveram grande concorrência de um mês para cá: a do escultor Anish Kapoor, que se encerrou dia 10 na tradicional Royal Academy – que até pouco tempo atrás vedava a entrada de artistas vivos –, a retrospectiva da francesa Sophie Calle – "Talking to Strangers", na Whitechapel Gallery em cartaz até 3 de janeiro, e a mais importante de todas, a exibição "Pop Life: Art in a Material World" (Vida pop: a arte em um mundo material), na Tate Modern até 17 de janeiro, com obras de Andy Warhol, Jeff Koons, Damian Hirst, Takashi Murakami e outros.


Os chamarizes são um tanto toscos, mas sintomáticos da qualidade do interesse atual pelo fenômeno contemporâneo. Anish Kapoor fez sucesso porque acionava um canhão contra uma parede multicolorida de cera dezenas de vezes ao dia, criando obras de quase acaso e provocando o riso nervoso da plateia. Sophie Calle se diz a criadora da arte da autoficção, ou seja, uma espécie de culto histérico à personalidade que consiste em fazer da própria vida uma eterna instalação, um eterno happening. Está fazendo sucesso.

Na Tate, o pessoal vai para espiar a sala secreta de Jeff Koons, com a série "Made in Heaven" (Feito no céu), com fotografias e esculturas pornográficas que mostram o artista copulando em 1991 com a ex-parlamentar e prostituta Cicciolina. Uma escultura gigantesca em acrílico e cores berrantes que mostra o casal no auge do acasalamento é o ícone da exposição. Há outras salas escandalosas, só que a de Koons supera todas pelo exibicionismo – e obtém a pronta resposta do público. Não é novidade: ponha sexo, que todo mundo comparece.

Minha primeira impressão foi de que a Tate Modern, um altar da arte experimental, finalmente se rendeu aos mercenários mais descarados da arte. Na epígrafe da exibição, vem o autor do termo e da tela em acrílico que traz as palavras em néon “Pop Life”: Andy Warhol (1926-1987), o pai da pop art. Entre tantas frases de efeito de Warhol, uma foi destacada para dar sentido ao evento: "Arte boa é bom negócio" (Good art is good business).

Mas logo me dei conta de que a intenção do curador principal da exposição, Jack Bankowsky, editor da revista Artforum, era provocar o espectador e fornecer uma reflexão crítica e negativa sobre os rumos que a arte tomou nos últimos 30 anos. Nesse período houve uma crescente banalização acompanhada de mercantilização da obra de arte.

A mostra coloca a fase final de Warhol como o centro irradiador de um movimento que chega até nossos dias. Trata-se da exacerbação da ideia do artista-celebridade, dono de uma fábrica (Factory, fábrica em inglês, era o nome do ateliê de Warhol em Nova York). Ele vira um entrepeneur capaz de produzir lucros cada vez maiores com obras de arte cada vez mais repetitivas e massificadas.


Warhol ficou famoso nos anos 60 por ter levado a lata de sopa Campbell's para os museus, destruindo assim qualquer resquício da aura na obra de arte. Foi uma atitude renovadora, pois levantou a discussão sobre as diferenças entre arte culta e popular, aura e automação. No fim da vida, porém, Warhol levou seu cinismo ao extremo. Em vez de se renovar, pôs em prática aquilo que havia vaticinado vinte anos antes: a “pós-arte”. Falido, ele tratou de repetir suas pinturas de acrílico e silk-screen com auto-retratos, caras de Marilyn Monroe e sopas Campbell's, para assim vender mais rapidamente.

Ele que já tinha uma queda para o mundo dos famosos passou a aparecer ainda mais nos anos 80. Como uma caricatura de si próprio, participou de programas cômicos, apresentou um talk show de moda e reproduziu sua técnica em tudo quanto foi capa de revista. Chegou a apresentar um comercial de videocassete no Japão. Tudo isso é exibido em vídeo na mostra. O artista virou o paparazzi de si mesmo. Em suas últimas obras, fez descontos em retratos para celebridades e assinou em pernas de modelos. Também produziu um retrato de seu namorado, o artista Jean-Michel Basquiat (1960-1988), com tinta acrílica e manchas de urina sobre a tela. Horrível. Mas é só o início da exposição.

Os discípulos de Warhol são ainda mais podres. Não inventaram nada, apenas copiaram os piores procedimentos da fase mais medíocre do “mestre”. Seu protegé Keith Haring (1958-1990) montou nos anos 80 a loja Pop Shop em Nova York para vender subprodutos de seus grafites. O já citado Jeff Koons (está vivo, o infeliz) vampirizou mulheres famosas para produzir sua pornografia. E criou um abjeto coelho de aço inoxidável usado na inauguração de uma temporada de liquidação da loja Bloomingdale's em Nova York. O alemão Martin Kippenberger (1953–1997) se produziu em auto-retratos e pichações em Berlim. Quis se vender como astro boêmio (conversei esse cara em Berlim um ano antes de ele morrer, patético) e ficou famoso depois de morto.

O modelo maior do culto à própria personalidade e do mercenarismo é Damian Hirst (nascido em 1965), um dos YBAs (Young British Artists) que comecou a aparecer em 1990 com telas de bolinhas coloridas produzidas em série por uma equipe e ganhou notoriedade em 2008 quando decidiu colocar sua obra diretamente nos leilões, sem passar por galerias de arte. Foi assim que, enquanto o mundo mergulhava numa recessão, ele ficou milionário da noite para o dia por causa de um leilão da Sotheby's.

Algumas de suas “obras” estão na mostra: a caixa "O beijo de midas", que mostra uma estante de diamantes cinzelados (um eco das fotografias escuras que Warhol fez no fim da vida de sua joias), e o famoso "Bezerro", um animal empalhado, fixado no chão por ferraduras de ouro, mergulhado em formol em uma caixa de vidro. Arte para Hirst é venda mesmo e não tem conversa. Quem quer pagar que pague. É o artista-obra (Sophie Calle ficaria bem na exposição).

Esta é mais ou menos a postura do japonês Takashi Murakami (nascido em 1963). Na sala mais espalhafatosa da mostra figuram as peças dele. Há uma espécie de pokémon vermelho com olho furado e a boca aberta, onde estão copos de papel e hambúrgueres cravejados de joias. Um afresco imenso representa a princesa Majokko, a personagem de mangá dos otakus do bairro de Akihabara de Tóquio – o paraíso das histórias em quadrinhos. Os cabelos azuis, as minissaias e as meias xadrez de Majokko inspiram até hoje as lolitas japonesas. Em um telão, a atriz Kirsten Dunst participa de um videoclipe dirigido por McG e Murakami. Ela é a Majokko em seu elemento, Akihabara, batendo papo e dançando com todo otaku que encontra pela frente. Eu falei com Murakami na Bienal de 2004. O sujeito acreditava que o que fazia era o futuro. “Minha arte representa o futuro”, disse na ocasião.

“É só uma questão de tempo. Por isso que tenho de produzir rapidamente minha obra.” Cumpriu o que disse. Sua arte não usa apenas a linguagem do animê e do mangá, como também seus artistas. Murakami mantém seu "ateliê" em Akihabara, cercado de jovens que ambicionam conquistar o mundo com uma espécie de apologia da “leveza” (eu leio: “idiotice”) da imagética mangá. Na verdade, a obra de Murakami revela o seu patético fascínio pelo Ocidente naquilo que o Ocidente tem de pior. Eu prefiro animê de verdade que esse tipo de arremedo cretino.

Estar diante desse tipo de obra causa um desconforto e uma espécie de alívio. Pelo menos no que diz respeito a mim, saí da exposicão com asco de arte. Nem quis continuar a visita pelos sete andares da Tate Modern. Se tudo o que foi realizado antes veio dar nisso, então é melhor ficar sem ela. Melhor esquecê-la. A arte só está servindo para enriquecer esses vigaristas que se dizem artistas: vigartistas.

As obras de Hirst, Murakami e outros empobrecem o olhar, aniquilam a sensibilidade, rebaixam o visitante com sua riqueza obscena. Num mundo totalmente materialista, a arte rasteja na lama, no sexo, na futilidade e na morte para vender mais em leilões de banqueiros. Se antes as pessoas lamentavam que a arte havia abdicado da beleza, agora ela perdeu a aura, o respeito, a vergonha e – pior – a capacidade de ao menos chocar. Vai demorar, mas espero me recuperar do enjoo.

Luís Antônio Giron