Uma tradução contemporânea para a história da arte

Posted on 12/10/2011 by UNITED PHOTO PRESS MAGAZINE

“Os olhos têm o brilho e a umidade que se costumam ver nos seres vivos, e em torno deles percebem-se zonas lívidas e rosadas, assim como pelos, coisas que não é possível fazer sem muita sutileza. Os cílios, representados no modo como nascem na carne, ora mais densos, ora mais ralos, obedecendo ao giro dos poros, não poderiam ser mais naturais. O nariz, com aquelas belas narinas róseas tenras, parece estar vivo. A boca, cuja fenda termina em cantos de um vermelho que une à carnação do rosto, na verdade, não parece feita de tintas, mas de carne. Na base de seu pescoço, quem olhar atentamente verá a pulsação das artérias: pode-se dizer que essa pintura foi feita de uma maneira capaz de causar medo e temor a qualquer artista valente, fosse ele qual fosse.”

O célebre retrato de Mona Lisa, do pintor e escultor florentino Leonardo da Vinci (1452-1519), todos conhecem: Gioconda está guardada sob o número 1061, no Museu do Louvre, e imortaliza a bela esposa do comerciante Francesco del Giocondo. Já esse excerto de abertura que você acabou de ler - provavelmente pela primeira vez - não: chega apenas agora ao português, compondo a obra em que foi publicado originalmente, em 1550, Vidas dos artistas (WMF Martins Fontes, 824 páginas, R$ 125). O título, de autoria de um também artista italiano, Giorgio Vasari (1511-1574), não é somente um olhar talentoso, apaixonado e contemporâneo ao cinquecento…

São as páginas que fundam a historiografia da arte ou, em outras palavras, a primeira e incontornável obra crítica voltada a nomes não menos talentosos que Da Vinci, como foram o pintor e arquiteto Rafael de Urbino (“Em Rafaello, resplendiam claramente todas as egrégias virtudes da alma, e a graça, o estudo, a beleza, a modéstia e os bons costumes que as acompanhavam eram tamanhos, que teriam encoberto e escondido qualquer vício, por mais feio, e qualquer mácula, por maior que fosse”); ou seu oponente, Michelangelo Buonarroti (“e que ninguém acredite jamais vir a contemplar um nu tão divino pela beleza dos membros e pela maestria do corpo, não havendo morto que mais se assemelhe àquela morte”, escreve Vasari, sobre a escultura La Pietà).

Na própria linguagem de Vasari - para além de seus quadros e de projetos arquitetônicos bem-sucedidos como o da Galleria degli Uffizi, sede do museu principal de sua cidade natal, Florença; para além de um ou outro equívoco factual; para além de suas preferências pessoais e alianças políticas -, um dispositivo de aproximação capaz de preservar o susto, o deslumbramento, a capacidade de contemplação diante de obras desbotadas pela estereotipia do sempre aligeirado olhar moderno.

Serviço

Vida dos artistas, de Giorgio Vasari
Editora: Martins Fontes
Preço médio: R$ 125

Vida de Michelangelo Buonarroti, de Giorgio Vasari
Editora: Unicamp
Preço: R$ 86


Trecho do livro

"Enquanto retratava a Mona Lisa, que era belíssima, por perto sempre havia pessoas a tocar ou cantar, bem como bufões que a mantinham alegre, para eliminar aquela melancolia tão frequente na pintura e nos retratos que se fazem. E, nesse retrato feito por Leonardo, há um sorriso tão agradável que mais parece coisa divina que humana, tão admirável por não ser diferente do natural"
Vasari, sobre o sorriso da Mona Lisa

Entrevista >> Luiz Marques

“Estudar Michelangelo é como adentrar um universo”

Em especial, quais as passagens de Vidas dos artistas permanecem entre as mais pertinentes e belas e quais são vistas hoje em dia como afetação de época?
As “Vidas” são compostas basicamente por três tipos de textos: Os tratados técnicos, os Proêmios mais teóricos às três Idades em que Vasari periodiza sua história (os anos 1250 a 1400; os anos 1400 a 1500 e os anos 1500 a 1550) e as biografias propriamente ditas. Neste conjunto, destacam-se sem dúvida os Proêmios à Segunda e à Terceira Idade, por sua capacidade de elaborar uma teoria da história e organizar conceitualmente o conjunto do período. Além disso, algumas biografias são excepcionalmente importantes, tais como a de Giotto, a de Masaccio e a dos três mestres maiores da Terceira Idade: Leonardo da Vinci, Rafael e Michelangelo. Mas é a Vida de Michelangelo que coroa o conjunto da obra, e é muito mais longa e detalhada que as demais, que concentra as linhas de força do pensamento de Vasari. Isto posto, há uma infinidade de momentos belíssimos dispersos ao longo do texto, sobretudo no que se refere à percepção do que é peculiar em cada obra mencionada. Vasari é um mestre da descrição visual, arte que chamamos écfrase. Quanto às passagens menos atuais, diria que há poucas. São evidentemente redundantes e excessivos seus elogios a Cosimo I, o duque de Florença de quem Vasari é cortesão. Mas seria provavelmente errôneo considerá-los simples afetação e hipocrisia, pois Vasari parece realmente venerar seu duque.

Quem foi o Vasari artista? Ela usava o conhecimento do métier nas suas observações pessoais?
Embora não seja escultor, Vasari conhece a fundo o ofício dos artistas de que trata, pois é pintor e arquiteto de enorme talento. Seus dotes como pintor foram, por vezes, depreciados pelos historiadores, pois seus resultados neste campo são efetivamente desiguais. Mas penso que há não poucos êxitos altíssimos em sua obra de pintor e desenhista. Já seu talento como arquiteto é universalmente reconhecido.

Vidas dos artistas e Vida de Michelangelo Buonarroti pela primeira vez em português. Qual o significado destas edições para o estudo da história da arte no Brasil?
Traduzir Vasari para o nosso idioma, possibilitando assim o conhecimento mais generalizado entre nós da primeira, e ainda a mais importante, história da arte da Idade Moderna, é uma etapa imprescindível para a superação do isolacionismo em que se mantiveram, até há pouco, os estudos sobre a história da arte no Brasil. Há duas traduções em alemão, duas em francês, três em inglês, e até agora não havia nenhuma em português, o que é bem sintomático de nosso provincianismo, tanto em Portugal como no Brasil. Seria desejável que se publicasse no futuro uma tradução também da edição de 1568 das Vidas, revisada e muito ampliada pelo autor. Mas esta primeira versão de 1550 e minha própria tradução comentada da Vida de Michelangelo constituem um começo prometedor. Ambas as edições devem ser lidas, de preferência, com o auxílio de dois sítios brasileiros da internet que contêm muitas das ilustrações e comentários das obras mencionadas por Vasari e outras obras correlatas: www.vasari.art.br e www.mare.art.br.

A escrita e a metodologia de Vasari emulam as técnicas artísticas de seu tempo? Em que sentido? Como Vasari procedia para levantar informações e realizar suas observações?
Sobre a metodologia de Giorgio Vasari (1511-1574) relativa ao modo como ele organiza o vasto material histórico que redunda em sua monumental Vidas dos mais excelentes pintores, escultores e arquitetos, de Cimabue aos nossos dias (1550 e 1568), há de fato pouco documentação. Um desenho de Vasari (ou de seu discípulo, Prospero Fontana), conservado em uma coleção privada em Boston, mostra no verso uma lista de artistas. Trata-se do único vestígio conservado do canteiro de obras do historiador. Sabemos, por outro lado, que este trabalho de coleta e organização do material ocupou-o por aproximadamente dez anos, isto é, de 1538 e 1548.

Vasari é incontornável para os historiadores do cinquecento. Em qual circunstância aconteceu seu encontro com ele? Por que seu especial interesse por Michelangelo? Fale-me um pouco da produção de seu ensaio/tradução publicado pela Unicamp (uma pesquisa de 20 anos, pois não?).
Qualquer pessoa que volte seu interesse para a história do Renascimento italiano deve forçosamente confrontar-se com a figura excepcional de Michelangelo (1475-1564), o artista que domina seu século. Segui, portanto, o curso natural das coisas, tão logo comecei a me interessar pela história da arte, interesse hoje canalizado para o projeto de um Museu de Arte para a Pesquisa e a Educação, de acesso irrestrito na internet (www.mare.art.br). Mas quando comecei a traduzir a Vida de Michelangelo, de Vasari, não avaliei o quanto tal projeto seria absorvente. Estudar Michelangelo é como adentrar um universo. É como contrair o vírus de uma doença incurável, com a peculiaridade de se tratar de uma doença de que você não deseja se curar.

Michelangelo era o único artista vivo à época da publicação das biografias de artistas de Vasari. Eles mantiveram algum tipo de relação pessoal?
Quando da primeira edição, de 1550, atualmente traduzida para o português, Michelangelo era de fato o único artista vivo. Depois, na edição muito ampliada e revista de 1568, Vasari inclui muitos outros artistas vivos. A amizade entre ambos data provavelmente de 1542 ou 1543, quando Vasari é hóspede em Roma de um amigo comum, o banqueiro florentino Bindi Altoviti. Desde então, suas relações se adensaram sempre mais, e é possível afirmar, sem sombra de dúvida, que Vasari viria a se contar rapidamente entre os amigos mais diletos do grande mestre.

“Michelangelo representava a ascensão da civilização florentina” sobre Roma, observa Giovanni Previtali. De quais valores ele está falando? Há uma oposição manifesta entre Michelangelo e Rafael? De que ordem?
A ascendência de Florença sobre Roma já estava consolidada desde, ao menos, o início dos anos 1480, quando os artistas florentinos decoram com afrescos as paredes laterais da Capela Sistina. Mas, com Michelangelo, esta ascendência atinge seu ápice, no sentido em que, a partir dos seus afrescos da abóbada da Capela Sistina, ele se firma em toda a Itália central como o modelo único de excelência. Embora Rafael (1483-1520), artista mais jovem que Michelangelo, seja capaz de criar desdobramentos mais efetivos na cultura figurativa do século 16, ele próprio é reconhecidamente tributário de Michelangelo. A oposição entre ambos, portanto, decorre mais de uma luta pelo controle das grandes encomendas artísticas da Roma pontifícia que de uma oposição artística. Rafael será responsável por uma interpretação pictórica de Michelangelo, cuja pintura permanece uma transposição para a parede de uma arte que se concebe sempre como escultura.