Meia Noite em Paris: Encontros Imediatos do 1º Grau com Woody Allen

Posted on 9/15/2011 by UNITED PHOTO PRESS

Woody Allen com Carla Bruni, uma das protagonistas do filme "Meia Noite em Paris"










Meia-Noite em Paris, a obra nº 41 de Woody Allen é um filme-abóbora ao contrário. Ao soar a última badalada, a alpergata torna-se sapato de cristal e talentosos os mortais a cada esquina.
(veja o trailer em HD no final da reportagem)


A realidade é muito maçadora, mas é o único sítio onde se pode comer um bom bife. Da vastíssima gama de frases inspiradas que Woody Allen produziu no último meio século, talvez esta seja a mais justa para colocar em epígrafe do seu último filme, Meia-Noite em Paris (estreia-se hoje, quinta, dia 15), a nova incursão de um dos maiores criadores cinematográficos do século XX na geografia - e nos orçamentos - europeus.


Desta vez, temos Owen Wilson como personagem padrão, o escritor cheio de inquietudes intelectuais, que se auto-desprestigia enquanto guionista de sucesso de Hollywood, porque o que ele quer mesmo é escrever um livro (onde é que nós já vimos isto antes? Nos filmes de Woody Allen, claro). E que tem um desencanto existencialista quanto ao sentido da vida (idem). E um desinteresse desapiedado pelas pequenezas do quotidiano (idem). E que se sente deveras enfadado pela mediocridade, pela banalidade e frivolidade dos seus contemporâneos (idem). E que acaba por se apaixonar por uma mulher (Marion Cotillard) vagamente misteriosa e neurótica, muito tchecoviana, que ainda não encontrou o seu talento oculto (idem).



Faz parte dos espíritos desassossegados dos génios, criarem galáxias e depois circularem em torno das suas órbitras, recorrências, revisitações, genealogias e obsessões. Quando o filme abriu, em Maio, o festival de Cannes, apressaram-se a estabelecer pontos de contactos com o realismo mágico, que tantas Allen abordou, nomeadamente em Rosa Púrpura do Cairo, as pessoas atravessam calmamente as fronteiras para outra dimensão. Em Rosa Púrpura... passavam do celulóide para a vida real, e vice-versa, Em Meia Noite... a coisa torna-se igualmente filosófica, e um bocadinho einsteiniana, já que as personagens viajam no tempo. E fazem-nos porque sim. Este realizador não é de perder tempo com explicações tecnológicas, máquinas ou outros engenhos rebuscados - não fosse a magia outra recorrência "meteorítica" que está sempre a abrir crateras no Planeta Allen.


Portanto, continuando nesta lógica de fabricar constelações pelos mais de quarenta filmes que produziu nos 45 anos de carreira, fazemos uma paragem numa estrelinha que se impõe: um pequeno gag celebrizado em Annie Hall (1997). Aquele em que o filósofo canadiano Marshal McLuhan faz um cameo de si próprio e é chamado por Allen para explicar a uma personagem pedante, professor de Media, na Universidade de Columbia, que se exprime sonoramente, na fila do cinema, e derrama imbecilidades sobre Fellini, Beckett e McLuhan. E vem de lá o filósofo "him-self" explicar-lhe "você não percebe nada das minhas teorias. Nem percebo como pode dar aulas de comunicação.


E Woddy Allen para todos nós: "Meus amigos, se a vida real fosse assim...". É o sonho de qualquer um, confrontar um pateta enfatuado com a autoridade inquestionável. E é isto no fundo, que acontece ao escritor. Pode desmentir o professor britânico enervante que deixa deslumbrada a noiva (do presente), com as suas conferências na Sorbonne, e a sua douta sapiência sobre as amantes de Rodim, os nenúfares de Monet e os vinhos franceses. É que ele, sim, privou com a nata da intelectualidade mundial na noite anterior. E aqui somos tentados a abrir outro link para um dos Sonhos de Kurosawa (1990), Corvos, quando um estudante de artes, durante uma visita a uma museu, se descobre dentro dos quadros de Van Gogh, e tenta encontrá-lo, já sem a orelha, no Campo de Trigo com Corvos.

 
Onde comer o melhor bife?
Apaixonado por Paris, sobretudo quando chove (em contraste com a ensolarada Califórnia), este escritor sofre de um encantamento por um tempo que não é o seu. A sua utopia é o passado. Os loucos anos 20 e 30, os surrealistas, as vanguardas modernistas, quando aquela cidade tinha uma alta densidade de gente cerebralmente estimulante. E uma bela noite (aqui é a parte de conto de fadas do filme) soam as 12 badaladas e ele é transportado num Peugeot vintage, onde o casal o Fitzerald (Scott e Zelda) o levam a uma festa de Jean Cocteau, onde Cole Porter toca ao piano Let's Do It, Let's Fall in Love, não por acaso. O tema faz parte do musical da Broadway Paris, de 1928.



Depois é um fartar vilagem de celebridades. Cruza-se com Ernest Hemingway (Corey Stoll) que lhe fala de caçadas e de andar à pancada, senta-se à mesa de um Salvador Dali (Adrien Brody) fascinado por rinocerontes, sugere a Luís Buñuel o tema do seu Anjo Exterminador, um grupo de pessoas que não conseguem sair de um banquete, e deixa o realizador cheio de perplexidades: "Não percebo porque é que ele não hão-de abrir a porta e ir-se embora?". A presença de um escritor da era da internet entre eles, é que não parece surpreender ninguém - afinal de contas, estamos entre surrealistas.



Nestas andanças pelo meio desta colecção de ícones que ainda não sabem que o são - porque, convenhamos, não é fácil ser contemporâneo da própria posteriadade - o escritor vai ter a casa da madrinha da "geração de perdida", Gertrud Stein (Kathy Bates), que se oferece para lhe ler o romance. Conhece um Picasso com mau humor, e a sua amante (Cotillard), ex de Modiglianni e de Georges Braques, que sonha estudar alta costura (com Coco Chanel, claro). Só que esta musa de artistas também padece desta nostalgia de exaltar o passado e desqualificar o presente, portanto o que ela mais desejava era ter vivido em Paris nos tempos da Bélle Époque, no dealbar do século. E mais uma viagem no tempo, encontram-se entre as Folies Bérgeres, entabulam conversa com Toulouse Lautrec, Degas e Gaugin, que estão, também eles, muito desapontados com aquela contemporaneidade, dizem-lhes que aquela é uma "geração vazia e sem significado". O que eles queriam era ter nascido na Renascença.



A crítica e o público francês ficaram muito agradados por Paris ser olhada por Woody Allen como a mais credenciada capital para receber tamanhos vultos da cultura, local de inspiração artística. Ao contrário de Inglaterra (que foi mais utilizada pelo realizador para palco de crimes) ou Barcelona que lhe evocou, antes, triângulos e quadrados amorosos escaldantes. Ainda por cima, fez comparecer Carla Bruni (a sra Sakozy) para um papel rudimentar de guia turística do Museu Rodin - porque, ironizou o realizador - "sempre podia facilitar nas autorizações de estacionamentos".



No fundo é mais um filme de Woody Allen, admiravelmente escrito, filmado e musicado, com o seu leitmotiv de sempre: a intransigência contra a estupidez humana, desta vez, demonstrada de uma forma mais suave e mágica, menos cáustica e virolenta. Mais nostálgica, em suma. Faz parte do seu espírito interrogativo, o desejo de colocar-se em contacto com estes altos vultos da intelectualidade como deuses de um Olímpo. Mesmo que seja só para concluir que o presente é maçador, pois é, e dantes é que era, pode ser, mas não havia epidural, nem vacina contra a poliomelite, as pessoas morriam de sífilis e de turbeculose. E o passado é bom para se ir, porventura comer um bom bife, e voltar.



E felizmente, Woody Allen andará por aqui, para assegurar menos tédio nos nossos tempos presentes.