“Gotas de Ortega” : a desumanização da arte em Picasso e Duchamp

Posted on 12/24/2009 by UNITED PHOTO PRESS


O nosso projecto em relação ao titulo dado a esta crónica, foi objetivamente o de tentar vincular algumas das interpretações conhecidas ao célebre ensaio La Deshumanización del Arte (2) do filósofo espanhol. O fato é que ao tentar aproximar-se da arte moderna através da definição de certos pressupostos, Ortega tocou em pontos extremamente precisos para lidar com Picasso e Duchamp. Verdade que de forma inteiramente inesperada, pois sua abordagem ao partir da “impopularidade” característica da arte moderna, era mais sociológica―daí tendendo sempre à generalização, mencionando artistas e obras apenas quando apropriados para esclarecer seu argumento―, mas isso, como veremos, de forma alguma o impede de ser útil à nossos propósitos.


Gota à Gota
À que se refere Ortega quando fala de “desumanização da arte”? antes de mais nada, o conceito é um instrumento utilizado por ele para compreender os objetivos da “nova arte”, que tenderiam à “desumanização” por buscar: (1) evitar formas vivas; (2) fazer da obra apenas arte; (3) considerar arte como jogo; (4) uma essencial ironia; (5) evitar a dissimulação; e por fim, (6) uma total intranscendência. Esses pontos, nos alerta o autor, são sumamente conexos entre si, e não devem ser analisados separadamente. O que nos propõe é antes uma explicação gradual do conceito de desumanização entrelaçada à esses pontos, a qual nos levará a compreender porque considera positiva, e mesmo necessária, uma “arte desumanizada”.

Para entendermos a atividade artística Ortega propõe inicialmente uma cena: um homem moribundo; junto ao leito sua mulher e um médico a tomar as pulsações do doente; ao fundo, mais duas figuras, um repórter e um pintor. Da mulher ao repórter, explica, observamos um distanciamento gradual em relação à experiência do moribundo. Todos, direta ou indiretamente, lá estão para compartilhar dessa experiência. Mas quando chegamos ao pintor algo muda: deparamo-nos com uma total indiferença, pois “sua atitude é puramente contemplativa, cabe dizer que não a contempla em sua integridade.”(3) Para Ortega, o pintor, diferente dos demais, precisa evitar o que chama de “realidade vivida”, a qual

“na escala das realidades possui uma peculiar supremacia que nos obriga a considerá-la como a realidade por excelência, (…) em vez de realidade vivida, poderíamos dizer realidade humana [pois] (…) o pintor que presencia impassível a cena de agonia parece inumano.”(4)


Ciencia y Caridad, (estudo e definitivo), Picasso, 1897.
É nesse sentido, pois, que devemos entender “humanidade”: estamos na realidade quando compartilhamos sentimentos supostamente “comuns”, somos humanos quando interagimos, ou aparentamos interagir no meio social. Inversamente, quando nos negamos a interagir, estamos fora da realidade e somos desumanos―pois não agimos de forma natural socialmente.


Por uma Arte
Logo no início do texto compreendemos que para Ortega são igualmente equívocas em seus objetivos a arte que simplesmente copia as formas naturais e a que o faz em relação à sentimentos ou reações “socialmente naturais”. O grau de pureza da arte, para ele, mede-se pelo êxito de certo processo de eliminação de “resíduos” de realidade humana. Importante notarmos aqui que não fala da “nova arte” unicamente, para ele a verdadeira arte sempre guiou-se ou realizou-se através desse objetivo, e não faria sentido combater tão veementemente a tradição—como faziam os jovens artistas de então—não estivesse esta demasiado “impura”. A arte modena apenas reagira de forma proporcional ao que Ortega chama de “desleal século XIX”, ou seja, radicalizavam evidenciando os reais objetivos da arte, cortando sistematicamente todas as “pontes” com a realidade―sempre presentes, mas de forma totalmente secundária na grande arte do passado.


Vermeer, The milkmaid (1658-61).
Nesse ponto muitos são os possíveis caminhos de análise; nossa opção aqui é de um lado seguir pelo que há de mais básico na Desumanização, a rígida contraposição realidade X arte, e de outro buscar aos poucos nos aproximarmos do que há de mais típico do pensamento orteguiano, isto é, sua interpretação histórica pautada pela “necessária divisão” da sociedade entre massa e elite. Daremos maior ênfase ao primeiro aspecto, advertindo porém que a estrutura do trabalho manteve sempre em vista esses dois planos.


Puro Kant?
Como vimos, para Ortega, a divisão válida não é de forma alguma tradição X vanguarda, que é apenas circunstancial, mas realidade X arte. O estudo das tradições, revelaria sobretudo uma história de superações, pois que “na arte é nula toda repetição”(5) . Os artistas do século XIX teriam procedido impuramente, pois

“reduziram ao mínimo os elementos estritamente estéticos e faziam a obra consistir em ficção de realidades humanas, nesse sentido podemos dizer que toda a arte daquele século foi realista (…) romantismo e naturalismo se aproximam ao revelar sua comum raiz realista.”(6)

Sem dúvida já pressentimos aí a vitalidade do pensamento de Ortega, a movimentar conceitos num universo sem lugares comuns. Há, no entanto, algo claramente familiar nesse critério de grau de pureza artística: faz-se sentir a influência do pensamento estético kantiano. Segundo Julián Mariás, seu discípulo direto, a formação de Ortega y Gasset deu-se em Marburgo com o grande neokantiano Hermann Cohen, a qual, segundo ele “deu-lhe minucioso conhecimento de Kant e uma verdadeira imersão na atitude idealista”.(7) Forçoso vermos nessa rígida divisão realístico X artístico, vestígios dessa “imersão” na tendência a compartimentalização das faculdades delineada por Kant na terceira Crítica―e levada adiante por Cohen no seu Kants Begründung der Asthetik (1889)―, onde vemos a arte afirmar-se à medida que submergem o útil e o agradável. É partindo daí que o argumento da desumanização evolui. Diz e diz:

“Alegrar-se ou sofrer com os destinos humanos é coisa inteiramente diversa do verdadeiro gozo estético (…) A percepção da forma artística e a da realidade vivida são, a princípio incompatíveis, pois requerem uma acomodação diferente em nosso aparelho receptor; uma arte que proponha essa dupla visão será uma arte vesga.”(8)

O risco de dogmatismo aí implícito é bem representado pela figura do marchant e esteta alemão Daniel-Henry Kahnweiler, cuja rígida oposição, típica do pensamento neokantiano, entre o belo e o agradável “led him to categorically reject not only Matisse, but all abstract art as hedonistic decoration (and so on)”(9) . Quando Ortega nos diz, sobre a arte do século XIX, que “o artista compunha grandes edifícios apenas para neles alojar sua auto-biografia”, ou que “de Beethoven à Wagner toda música é melodrama”, e ainda, que “apenas o gênio individual permitia que ocasionalmente brotasse em torno do núcleo humano uma fotosfera radiante, com um resplendor era impremeditado [como no caso de Baudelaire]”, a princípio é difícil evitarmos o mesmo “diagnóstico” de Kahnweiler.

Sabemos porém, como nos diz Yve-Alain Bois, que, ao menos em relação ao cubismo, esse “dogmatismo” mostrou-se secundário, sendo essencial o alto grau de compreensão e pioneirismo que Kahnweiler atingiu―tendo sido talvez o primeiro a compreender o potencial da aventura cubista―, e para isso foi-lhe imprescindível a aplicação da estética neokantiana. Ora, quanto mais no caso de Ortega, sua análise certamente não se fecha em Kant. À parte sua persepectiva bem original―da qual falaremos mais adiante―, pelo texto (e amparados por sua biografia intelectual) podemos perceber que ao menos três outros grandes pensadores ajudam-lhe a estruturar o conceito de desumanização.

De Husserl sentimos emanar o ímpeto anti-positivista de Ortega. Seu enfrentamento, claro está, não é apenas para com a “arte impura”, mas antes contra o “pensamento impuro” do século XIX, que desvinculara a filosofia da metafísica; a arte, a reboque, apenas deixara-se seduzir por curtos circuitos análogos, “sua operação se reduziu a polir um núcleo humano dado, a dar-lhe brilho, textura ou reverberação.”(10) Com a fenomenologia de Husserl a filosofia retornou à “verdadeira tradição”―a metafísica. Ortega, que parece enxergar um processo análogo nas artes, propõe-nos como introdução “algumas gotas de fenomenologia” para compreendermos o verdadeiro caminho do artista.

Ortega foi também profundamente influenciado por Wilhelm Dilthey, cuja grande contribuição foi o historicismo, a “consciência histórica sem qualquer matriz doutrinal”. Quis dizer com isso simplesmente que tudo se dá numa circunstância histórica, ou seja, “não só o homem está na história, nem tem história, mas é história”; segundo Julián Marías, “com Dilthey descobre-se que o que muda é o próprio homem”(11) . Sentimos sutilmente essa perspectiva em diversos trechos da Desumanização(12) , ademais presentes nos célebres aforismos de Ortega, “eu sou eu e minha circunstância”, “o homem não tem natureza, tem história”, etc.

Por último, podemos destacar a influência do pensamento de Georg Simmel(13) para quem a vida tem duas definições que se completam reciprocamente: é mais vida e mais que vida:

“A vida precisa da forma e ao mesmo tempo é mais que a forma. (…) especialmente na atitude criadora, é o constante transcender do sujeito daquilo que lhe é alheio ou a produção daquilo que lhe é alheio. Com isso não se subjetiva esse ser alheio: o caráter absoluto desse outro, desse mais, é a fórmula e a condição da vida. O dualismo é a forma em que existe a unidade da vida. Por isso pode-se dizer num último e agudo paradoxo, que a vida encontra sua essência e seu processo em ser mais vida e mais que vida; isto é que seu positivo enquanto tal já é seu comparativo.”(14)

Ecos dessa perspectiva estão claros no texto de Ortega para quem o movimento por um arte pura é essencial não só na arte:

“Se vive na proporção em que se anseia viver mais; toda obstinação em manter-nos dentro de nosso horizonte habitual significa debilidade, decadência das energias vitais. O horizonte é uma linha biológica, um orgão vivo de nosso ser, ondula elástico quase ao compasso de nossa respiração.”(15)

Nossa pretensão aqui certamente não é posicionarmos o conceito de desumanização num contexto histórico-filosófico específico, apenas buscamos dar-lhe maior substância e coerência interna ao apontar essa composição específica. Busquemos então em que medida ele é aplicável à dois mestres da arte moderna.


Colagem sobre O Y G
Ao estudarmos as obras de Picasso e Duchamp nosso foco recai inevitavelmente em dois aspectos: o rompimento com a mímesis (Picasso) e na dissolução da aura/autor (com Duchamp), sendo esses dois pontos suficientemente complexos para desnortear-nos eis que requerem um considerável aparato histórico-filosófico para lidarmos com eles. Quando tratamos de arte, no entanto, temos sempre um recurso legítimo: se das obras surge a confusão, logo à elas devemos retornar na busca por respostas―, no fundo é desse movimento cíclico que, em boa parte, depende a vitalidade das obras-primas. Inevitável reentrarmos portanto nas órbitas de Duchamp e Picasso, em busca de uma força comum, só que agora em posse de uma nova orientação, os dois raios que amarram a arte moderna para Ortega y Gasset: metáfora e jogo.

Aparentemente estamos caindo em nova armadilha ao propormos lidar com outros dois conceitos tão amplos e difíceis, mas essa opção não é nada arbitrária; veio-nos das leituras mais relevantes sobre os dois artistas e da síntese que julgamos a mais adequada para a Desumanização. Da fusão de ambas parecem ter surgido bem naturalmente a metáfora picassiana e o jogo duchampiano. Sintetizamos Ortega então da seguinte forma:


(A) Desumanização = (propõe a arte como domínio da) metáfora = Picasso
(B) Desumanização = (propõe a arte como domínio do) jogo = Duchamp


Dentro da Metáfora
Se voltarmos aos seis pontos iniciais da Desumanização da Arte veremos que não consta entre eles, explicitamente, a metáfora. Então qual a razão para que a acrescentemos, e sobretudo, para que a elevemos, ao lado do jogo, acima dos demais? Primeiramente é preciso dizer que ao fazê-lo, de forma alguma estamos distorcendo o texto, que dedica-lhe um capítulo inteiro―El Tabú y la Metáfora(16) ―dando-lhe um destaque tão forte que por vezes chega estranhamente a ofuscar o conceito de desumanização. Na verdade a metáfora é nada menos que um instrumento para se atingir quatro dos pontos citados (evitar formas vivas, fazer da obra apenas arte, evitar a dissimulação e a busca pela intranscendência). E com isso afirma-se como o caminho que julgamos o mais apropriado para chegarmos à Picasso―para quem representação é a palavra chave. Do cubismo analítico às colagens, do impulso da máscara africana à célebre guitarra, e finalmente, ao atingir-se o cubismo sintético, assitimos à um processo de dissociação da representação tradicional, lastreada nas formas naturais.

E qual o papel que teve a metáfora, ou melhor, a compreensão do processo metafórico, nesse percurso? Yve-Alain Bois, no seu famoso Kanhweiler’s Lesson, atribui-lhe uma importância fundamental:

“[African Art] sintax is arbitrary, it no longer relies on anatomical knowledge (…) the vocabulary is arbitrary and, in consequence, extends to infinity because the elements no longer have need of any direct resemblance to their referent. A cowry can represent an eye, but a nail can fill the same function. From this second type of arbitrariness unfolds the third, as well as a complete range of poetic methods that we might now call metaphoric displacements. A cowry can represent an eye but also a navel or a mouth; therefore, an eye is also a mouth or a navel. Picasso had perceived African art’s potential for metaphoric extension (…) he insisted on the possibility of plastic metaphorization at the heart of cubism―in this sense we should speak of cubist work.”(17)


A lição da máscara africana (Grebo): El guitarrón (1912) e Cabeza de toro (1942).
Deixemos Yve-Alain Bois que não se aprofunda no conceito (interessa-se pela arbitrariedade do signo no viés estruturalista) e retornemos a Ortega que curiosamente abre um parêntese e (lembrando-nos Picasso e a máscara africana) recorre aos primitivos para explicar a metáfora:

“Quando se perguntou sobre a origem da metáfora surpreendentemente respondeu-se que uma de suas raízes está no espírito do tabú(18) . Houve uma época em que teria sido o medo a máxima inspiração humana. Sentia-se a necessidade de evitar certas realidades que, por outro lado, eram inevitáveis. O animal mais frequente do local e de que depende a sustento da população, adquire um prestígio sagrado. Essa consagração traz consigo a idéia de que não se pode tocá-lo com as mãos. Que faz o selvagem? Põe-se de cócoras e cruza as mãos abaixo das nádegas, porque assim as mãos são metaforicamente pés. E como para o homem primitivo o nome é um pouco a coisa mesma nomeada, não pode nomear certos objetos sem recair em tabú. Assim o polinésio, quando vê queimar o palácio-cabana do rei, diz: ‘Ardem raios nas nuvens do céu’. Desenvolvido desta forma tabuísta, logo o instrumento metafórico pôde ser empregado com os fins mais diversos; tornou-se a potência mais fértil que possuímos, tudo o mais nos mantém dentro do real, do que já é. Só a metáfora nos facilita a evasão, criando nas coisas ‘arrecifes imaginários, islas ingrávidas’.”(19)

No entanto, ao instrumentalizar a metáfora, percebeu-se o que esse processo de reformulação associativa tem de básico e generalizado, aquilo que simplesmente o torna possível: “A relação de nossa mente com as coisas consiste em pensá-las, em formar idéias delas. Com as idéias vemos as coisas, e nessa atitude natural de nossa mente, não nos damos conta daquelas. Porém entre a idéia e as coisas há sempre uma absoluta distância”. Conclui:

“O pintor que faz um retrato pretende apoderar-se da realidade da pessoa, quando na verdade deixou na tela uma seleção, caprichosamente escolhida por sua mente, da infinitude que integra a pessoa real. E se o pintor resolvesse então pintar sua idéia, seu esquema da pessoa? O quadro se converteria no que autênticamente é: um quadro, uma irrealidade. Antes se vestia a metáfora sobre uma realidade, como um adorno. [Com a arte moderna] ao contrário, se trata de realizar a metáfora, fazer dela res poética.”(20)

A “fuga da realidade” (expressão muito usada no texto) é o objetivo da desumanização, e essa fuga é logicamente algo paradoxal, pois sua estratégia a princípio parece ser apegar-se fortemente à própria estrutura da realidade―posto que esta não seria dada, e sim incessantemente construída. Mas afinal, à que mais pode-se recorrer? Como diz Ortega,

“o homem vulgar pensa que é coisa fácil fugir da realidade, quando na verdade é o mais difícil do mundo. Na linha mais abstrata vibra larvada uma reminiscência de certas formas naturais. [Diria o leigo:] ‘mas basta por exemplo fazer algo sem sentido, como juntar palavras aleatoriamente’. A questão no entanto é construir algo que não seja cópia do natural (…) a arte deve ser plena de claridade, melodia do intelecto, logo não pode consistir em nenhum tipo de contágio psíquico, porque esse é um fenômeno incosciente.”(21)

Do ponto de vista de Ortega temos sem dúvida confirmada a superioridade da aventura cubista em relação ao dadaísmo e ao surrealismo. Picasso e Braque sem dúvida projetaram e construíram algo novo e de forma bem consciente. A base analítica, com a lição da máscara africana, possibilitou o desdobramento de etapas sucessivas (colagem, “nova escultura”, cubismo sintético) de “êxitos desumanizadores”. A referência à fatores externos nas obras é mínima. Inverte-se a relação que teríamos no realismo; de fato, a realidade vivida não deve servir mais nem mesmo de “adorno”, passa a ser, metaforicamente falando, apenas uma peça de roupa a mais ordinária (muitas vezes literalmente de jornal), inevitável à condição humana, mas sem dúvida secundária.(22) Se Picasso buscava o quadro autêntico, pleno de irrealidade, acertou portanto quando insistiu e permaneceu operando no domínio da metáfora.

Botella de “Vieux Marc” (1913), Arlequín (1915) e Tres músicos (1921).
Não há dúvida que Ortega nos ajuda a vislumbrar o território cubista e que aparentemente seu argumento está bem formulado. Apenas quando diz que o pintor passou a “pintar sua idéia”, sentimo-nos um pouco afastados de Picasso, cujo trabalho percebemos como muito atrelado ao fazer-se da própria obra que torna-se tema de si mesma.(23) A menos que se entenda “idéia” de forma menos projetiva e alimentada por um eterno retorno às coisas; e que a “distância absoluta” não implique em renúncia prévia à materialidade. Ressalvamos ainda que em Picasso a ausência da “realidade vivida” pode ser bem mais problemática do que demos a entender (de certa forma Ortega sabe disso ao combinar desumanização com intranscedência), mas atentemos para algo novo, e mais interessante a nossos propósitos, que entra em questão: com o cubismo evidencia-se que o artista parece ter domínio sobre um processo, uma força estranha à ele mesmo. O texto chega a citar dois métodos artísticos-metafóricos que tem algo de “automáticos”, o supra e o infrarealismo, que consistem, um em trocar simplesmente a perspectiva habitual, outro em exagerar os acontecimentos mínimos, quase imperceptíveis, da vida. O que nos lembra o inframince… de Duchamp.

R. Mutt
Deixamos Ortega justo quando ia dizer que “a nova arte é a álgebra superior das metáforas”. Se diz álgebra é justamente para frisar a qualidade de frieza da desumanização, chega a citar: “toute la maîtrisse jette le froid” (Mallarmé). E nesse ponto já não nos sentimos mais tão próximos de Picasso como quando estávamos com a metaforização. Ainda que o caráter intelectual, cerebral, da sua obra seja manifesto, quando observamos as obras a frieza não é tão evidente (talvez, e apenas de forma imperfeita, no cubismo analítico). Já as colagens e o cubismo sintético apontam para um deleite inteligente do olhar, construídos com grande precisão, mas no plano da sensibilidade visual. A partir daqui certamente Duchamp é melhor companhia.

Se Picasso parece ter planejado, encontrado e aplicado largamente uma fórmula espetacular para uma “nova arte”, Duchamp, nos parece, encontra seu auge quando estabiliza-se no plano especulativo. Suas obras primas, os ready-mades e o Grand Verre, são obras a serem construídas pelo espectador.(24) Em vez de “formas naturais” acessórias (Picasso), agora é secundária a própria visualidade da arte que revela-se cruamente como um dado cultural da “realidade”. Duchamp, ao buscar fragmentos da realidade mediados por um “acaso consciente”, planeja e constrói enigmas culturais incompatíveis com a mesma: o “hasard en conserve” do artista é algo como uma “expressão” insolúvel por conter princípios distintos, mas que, deslocados para o contexto da arte, passam a comunicar-se intensamente, substituindo fluxos sintéticos por impulsos estéticos. E nessa indeterminação pressentimos, através de uma imagem, a arte em sua tempestade inicial―onipotente e plena de incertezas.(25)

Ready-mades: Roue de bicyclette (1913), Porte-bouteilles (1914) e In advance of the broken arm (1915).
Por isso Duchamp parece ter o mérito de manter-nos no nível mais elevado desumanização, nele vislumbramos uma arte ainda indissociável do todo de onde emana, ou uma “não arte” artisticamente apresentada (uma “vida não vivida”, se quisermos permanecer no paradoxo orteguiano): “É possível uma arte pura? Talvez não seja; mas as razões que conduzem a essa negação são bem precárias” (26) .

Duchamp, nos parece, permaneceu pacientemente (preguisosamente para alguns) diante do enigma. (E desse ângulo parece natural que sua produção seja tão diferente qualitativa e quantitativamente da de Picasso. Não haviam problemas a serem resolvidos dentro da arte). Nele, mesmo o produzir e o criar mostram-se como dados humanos desconfortáveis e artificiais. “Considero trabalhar uma imbecilidade” e “Meu objetivo de vida era passar pela chuva sem me molhar”(27) são frases do artista consideradas meramente cômicas mas que devem ser levadas à sério se quisermos entender o universo do artista. Para ele a arte deve servir de modelo para a vida.

Fair as Player
Entre as críticas feitas à Pierre Cabanne em sua famosa entrevista com Duchamp, uma é particularmente interessante: a de que o artista teria sido tratado como um “atleta campeão” (o que explicaria certa superficialidade do diálogo). A resposta do autor não é importante aqui e sim que, para Ortega, é justamente esse um dos caminhos mais férteis para compreendermos a arte moderna, isto é, seu caráter de jogo e brincadeira(28) ―chegando mesmo a aproximá-la dos esportes enquanto fenômeno sociológico.

Não vamos nos alongar sobre a questão da natureza do jogo, mas é indispensável delimitarmos minimamente a que estamos nos referindo, pois que facilmente podemos ser induzidos a consider como “jogo” toda atividade humana, o que obviamente esterilizaria o uso do conceito. Logicamente precisamos nesse momento de um guia à altura de tal tarefa, eis porque optamos por dar espaço ao grande Johan Huizinga cuja obra sobre o conceito em questão é da maior importância(29) . Em Homo Ludens, lemos:

“[O jogo] é uma função significante, isto é, encerra um determinado sentido. No jogo existe alguma coisa ‘em jogo’ que transcende as necessidades imediatas da vida, mas que confere um sentido à ação. A psicologia e a fisiologia procuram observar, descrever e explicar o jogo atribuindo-lhe um lugar no sistema da vida (…) preocupam-se apenas superficialmente em saber o que o jogo é em si mesmo e o que ele significa para os jogadores, não prestam atenção a seu caráter profundamente estético (…) o divertimento do jogo resiste a toda análise e interpretação lógica (…) É legítimo [portanto] considerar o jogo uma totalidade que ultrapassa a esfera da vida humana, logo é impossível que tenha seu fundamento em qualquer elemento racional. Em toda parte encontramos presente o jogo, como uma qualidade bem determinada e distinta da vida comum.”(30)

Essa qualidade distinta parece ser a que se refere Ortega (continuemos com Huizinga):
“Antes de mais nada, o jogo é uma atividade voluntária. Sujeito à ordens, deixa de ser jogo, podendo no máximo ser uma imitação forçada. Basta essa característica de liberdade para afastá-lo definitivamente do curso da vida natural (…) É possível em qualquer momento adiar ou suspender o jogo; jamais é imposto pela necessidade física ou moral. Chegamos à primeira das características fundamentais do jogo: de ser ele próprio liberdade (…) No que diz respeito as características formais do jogo todos dão grande ênfase ao fato de ser ele desinteressado. Visto que não pertence à vida ‘comum’, ele se situa fora do mecanismo de satisfação imediata das necessidades e desejos, e pelo contrário, interrompe esse mecanismo”.(31)

Esbarramos em Duchamp? A liberdade é, sem dúvida, a sua marca; antes de ser artista busca uma vida livre. E segundo Ortega são a arte e a ciência pura as atividades mais livres, menos submetidas às condições sociais da época. Quanto ao “desinteresse”, é o complemento perfeito para precisar a liberdade em Duchamp, em quem não há traço algum de comprometimento ou engajamento; quase dizemos que era artista somente porque precisamos dizer que todos “são” algo. Mesmo sua iconoclastia mais explícita, quando comparada à qualidade superior do pensamento duchampiano, perde todo sentido de revolta social, evidenciando-se muito mais, ora como autênticas brincadeiras, ora como mera estratégia auto-promocional. Se há algo de claro nele é sua incrível liberdade dentro de seu contexto (seja dadá, surrealismo ou cubismo), nada o retém substantivamente: sua ironia o preserva de qualquer fundo de seriedade(32) . De que outra forma explicaríamos a sua displicência em relação a arte enquanto instituição, o abandono precoce da pintura e, por fim, de qualquer atividade dita artística para dedicar-se ao xadrez?(33) Sem a leveza desses dois elmentos―desinteresse e liberdade individual―seria ele indiscernível dos demais dadaístas ou de um tipo comum de anarquista (tanto mais quando consideramos a obscuridade prolongada em que permaneceu).

Nu descendant un escalier (1912), L.H.O.O.Q. e Air de Paris (ambos de 1919).
Voltando ao curso da Desumanização, entramos então numa curva brusca, mas que logo revela um panorama muito agradável à nossos objetivos. Toda a questão da pureza até aqui tão reforçada parecia indicar um entusiasmo verdadeiramente ascético pela arte. Mas desponta uma contradição e aqui cremos ter Ortega agarrado algo de Duchamp; é o que ele chama de “irônico destino” da arte:

“Nunca demonstra a arte melhor seu dom que quando faz piada de si mesma. Porque ao aniquilar-se a si própria segue sendo arte, por uma maravilhosa dialética, sua negação é sua conservação e triunfo (…) Ser artista hoje é não levar à sério o homem tão sério que somos quando somos artistas.”(34)

Retornando a Huizinga (sobre “Jogo e Formas de Arte”), vemos que o caráter lúdico está nas raízes da linguagem poética:
“O abismo entre o ser e a idéia só pode ser franqueado pela imaginação. Os conceitos, prisioneiros das palavras, são sempre inadequados à torrente da vida; portanto, é apenas a palavra-imagem, a palavra figurativa, que é capaz de dar expressão às coisas e ao mesmo tempo a luminosidade das idéias; idéia e coisa são unidas na imagem. O que a linguagem poética faz é essencialmente jogar com as palavras. Ordena-as e injeta mistério em cada uma delas, de modo tal que cada imagem passa a encerrar um enigma (…) As escolas modernas, que se movem em domínios geralmente inacessíveis e gostam de envolver o sentido numa palavra enigmática, permanecem, portanto fiéis à essência de sua arte”.(35)

Duchamp parece mesmo operar nesse domínio da palavra-imagem, suas insistentes aliterações e assonâncias, sua incursão no cinema, os títulos-legendas de suas obras, e sobretudo a imaterialidade paradoxal do conceito-obra ready-made, remetem sempre a um aniquilamento da realidade, a escoar para o “abismo entre o ser e a idéia”. Rosalind Krauss chega mesmo a sugerir interpretar toda sua produção como uma reflexão sobre o processo fotográfico enquanto registrador de indícios de referentes materiais(36) .

Cenas de Anemic Cinema (Duchamp e Man Ray, 1926).
Interessante notarmos que, para Huizinga, nas artes visuais propriamente ditas o caráter lúdico torna-se mais questionável, pois,

“O fato de estarem ligadas à matéria e às limitações formais que daí decorrem é suficiente para impedir irremediavelmente a liberdade do jogo. O pintor, o escultor, o desenhista, geralmente gravam na matéria um certo impulso estético mediante um trabalho longo e penoso (…) No momento da ‘concepção’, sua inspiração pode ser livre, mas no momento da execução depende da habilidade da mão doadora de forma. E se na execução da obra de arte plástica tudo parece indicar a ausência do elemento lúdico, em sua contemplação não há qualquer lugar para ele, pois onde não há ação visível não pode haver jogo.”(37)

Logo, se concordamos com Huizinga, quando nos referirmos a arte de Duchamp, devemos insistir por um lado numa poética duchampiana, por outro numa abordagem artística que anuncia a morte das artes visuais na sociedade moderna.(38) Aqui detemo-nos; cremos ter nos aproximado suficientemente de nosso objetivo inicial, isto é, o de fazer bom uso da Desumanização enquanto indicador de caminhos para uma compreensão mais ampla da arte moderna.

Grand Verre (La Mariée mise à nu par ses célibataires, même [1915-23]), With my tongue in my cheek (1959) e Etant donnés (1946-66).

Conclusão ou Heróico Paradoxo
Quando optamos por essa estrutura de trabalho indicamos que havia outro ponto fundamental que voltaríamos apenas na conclusão. Trata-se do esquema montado por Ortega de modo a sempre convergir para suas próprias investigações:

“Se aproxima o tempo em que a sociedade, desde a política até a arte, voltará a organizar-se, como é devido, em duas ordens ou categorias: a dos homens cultivados (egregios) e a dos homens-massa. Todo mal-estar virá a desembocar e curar-se nesta cisão. A unidade indiferenciada, caótica, informe, sem disciplina regente em que vivemos não pode continuar. Permeia toda vida contêmporânea uma injustiça profunda e irritante: o falso pressuposto da igualdade real entre os homens. Durante um século e meio a massa pretendeu ser toda a sociedade (…) A música de Strawinsky e o drama de Pirandello tem a eficácia de obrigar o homem da massa a reconhecer-se tal como é, o bom burguês a sentir-se bem burguês: elemento incapaz de sacramentos artísticos, cego e surdo à beleza pura.

Se a arte não é inteligível para todos, quer dizer que seus temas não são os genericamente humanos. Não é uma arte para os homens em geral, mas para uma classe muito particular de homens, que podem não valer mais que os outros, mas que, evidentemente são distintos (…) A arte moderna contribui para que os ‘melhores’ se conheçam e reconheçam-se entre a multidão e aprendam sua missão, que consiste em ser poucos e ter que combater contra muitos.”(39)

Esse é portanto o sentido profundo da impopularidade da arte para Ortega y Gasset e de onde busca extrair um princípio essencial. Por isso poderia dizer sem contradição que as direções e obras particulares da arte moderna o interessam “mediocremente” e que “está próximo de concordar com os que dizem que a arte moderna até agora não produziu nada de valor.”(40) Sua posição seria exposta com toda clareza posteriormente, no seu La Rebelión de las Masas (1928), onde reafirmaria a “necessária cisão social”(41) , explicando que a diferença entre elite e massas, não era econômico-social, mas moral, inspirada na doutrina hindu do dharma e do karma, “de modo que o homem-massa podia se encontrar nas famílias ricas e o nobre, o homem de elite, nascer entre indigentes. Num discurso feito em 1912 numa organização sindical, ele indicava que as sementes da nova elite se encontravam entre os operários espanhóis”(42) . Vemos surgir daí certo ideal quixotesco de homem moderno, cultural e transcendente a um só tempo, que busca reconciliar-se consigo numa nova metafísica, numa nova razão (a razão vital).

Cabe ainda, como bom combustível para futuras investigações, citar a famosa pergunta de Porfiri Pietróvitch à Raskolnikov em Crime e Castigo: “Desculpe-me essa preocupação natural de homem prático e bem-intencionado, mas se houver uma confusão e um indivíduo de uma categoria imaginar que pertence à outra categoria, então aí…?”(43) Por ora, só podemos aqui esboçar uma resposta de Ortega (seria a mesma de Dostoiévski?):

“Na arte como na moral não depende o dever de nosso arbítrio; temos que aceitar o imperativo que a época nos impõe. A docilidade a ordem do tempo é a única possibilidade que tem o indivíduo de acertar.”(44)

Por fim, ao longo desse trabalho quando nos referimos ao “humano sem humanidade”, à “vida fora da vida”, quase dissemos várias vezes em vez de ideal orteguiano de arte, simplesmente ideal do Sturm und Drang. “A verdadeira poesia romântica”, diziam, “ainda não foi feita”. Sobre isso temos uma reveladora referência aos irmãos Schlegel no fim do texto, cuja proclamação da ironia como “máxima categoria estética”, para Ortega, “coincidiria com a nova intenção da arte”(45) . Eis onde vemos mais claramente a verdadeira tradição de Ortega e, quem sabe, (ainda que em matizes bem diferentes) a de Picasso e Duchamp.

BIBLIOGRAFIA
BOIS, Y.-A. Painting as Model, Cambridge: MIT Press, 1990.
CABANNE, P Duchamp: engenheiro do tempo perdido, São Paulo: Perspectiva, 2002.
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ORTEGA Y GASSET, J. La deshumanización del arte y otros ensayos de estética, Madri: Austral, 1987.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
(1) “Pólos do Moderno: Picasso e Duchamp”, durante o primeiro semestre de 2008 na PUC-Rio com o Professor Ronaldo Brito (a quem sou imensamente grato pela generosidade com que conduziu o curso).
(2) La deshumanización del arte foi originalmente publicado em 1925 na Revista de Occidente, fundada por Ortega y Gasset em 1923.
(3) Ortega y Gasset, La deshumanización del arte y otros ensayos de estética, pág. 56. Todas as passagens citadas foram livremente traduzidas pelo autor deste trabalho.
(4) Op. cit. pág. 57.
(5) Op. cit. pág. 58.
(6) Op. cit. pág. 52.
(7) Op. cit. pág. 497. Verdade que o sistema da metafísica da razão vital, significou importante crítica ao idealismo da consciência pura de Husserl –esperamos não distorcer o pensamento orteguiano se o apresentamos nesse ponto específico como exemplo de neo-kantismo.
(8) Ortega, op. cit. págs. 50 e 62.
(9) Yve-Alain Bois, “Kanhweiler’s Lesson”, em “Painting as Model”, pág. 68.
(10) Ortega, op. cit. pág. 62.
(11) Citado em J. Mariás, op. cit. págs. 421-422.
(12) “Na arte como na moral não depende o dever de nosso arbítrio; temos que aceitar o imperativo que a época nos impõe. A docilidade a ordem do tempo é a única possibilidade que tem o indivíduo de acertar”. Ortega, op. cit. pág. 53.
(13) Significativamente citado por Rosalind Krauss em “Circulation of the sign”, em The Picasso Papers.
(14) J. Mariás, op. cit. págs. 428-429
(15) Ortega, op. cit. pág. 62.
(16) Ortega, op. cit. pág. 69.
(17) Yve-Alain Bois, Op. cit. págs. 84-85.
(18) Refere-se a Heinz Werner, “Die Ursprünge der Metapher”, 1919.
(19) Ortega, op. cit. págs. 69-70.
(20) Ortega, op. cit. págs. 72-73.
(21) Ortega, op. cit. pág. 61-64.
(22) Não considerando, no contexto cubista, a possibilidade da arte abstrata.
(23) Temos a confirmar-nos sua famosa citação: “Eu começo com uma idéia, mas depois vira outra coisa”.
(24) Em sua concepção de arte Duchamp radicaliza o papel do espectador (ver no Creative Act o conceito de “coeficiente de arte”).
(25) Na conclusão faremos alusão mais direta ao Sturm und Drang.
(26) Ortega, op. cit. pág. 52.
(27) Pierre Cabanne, Marcel Duchamp: engenheiro do tempo perdido, São Paulo: Perspectiva, 2002.
(28) Convém lembrar que nas principais línguas ocidentais, to play, jouer, jugar, spielen, significam tanto “jogar” como “brincar”. Na nossa somos obrigados a escolher.
(29) O pensamento de Huizinga a respeito do “jogo como elemento da cultura” exerceu forte influência sobre muitos pensadores no séc. 20–entre eles Gadamer que levou suas investigações adiante.
(30) Huizinga, “Homo Ludens”, págs. 4-7.
(31) Huizinga, op. cit. pág. 10-12.
(32) Na conclusão tentaremos esboçar algo nesse sentido, com uma rede histórica mais larga.
(33) Sobre a questão do xadrez precisaríamos de mais conhecimento específico sobre o jogo para apontar algo substancial que fugisse do óbvio que seria dizer que o divertimento da arte terminara para Duchamp, que teria então buscado um novo jogo.
(34) Ortega, op. cit. pág. 80.
(35) Huizinga, op. cit. págs. 148-150.
(36) “Duchamp e o campo do imaginário”, em Le photographique, Rosalind Krauss.
(37) Huizinga, op. cit. págs. 185-188.
(38) Ver no Creative Act e seu conceito de coeficiente de arte―arte como uma relação aritmética entre o não expresso mas intencionado e o que é expresso sem intenção.
(39) Ortega, op. cit. pág. 48.
(40) Ortega, op. cit. págs. 58 e 85.
(41) Tendo sido tomado por muitos como uma apologia da desigualdade social.
(42) La rebelión de las masas, por Olavo de Carvalho, revista “Primeira Leitura”, agosto 2005.
(43) Dostoiévski, Crime e castigo, pág. 271.
(44) Ortega, op. cit. pág. 53.
(45) Ortega, op. cit. pág. 80

O trabalho que se segue é fruto da dificuldade que encontramos quando, após um curso sobre Pablo Picasso e Marcel Duchamp(1) , tentamos articular as obras desses dois grandes artistas que, de formas distintas—e em certo sentido opostas—, indiscutivelmente marcaram a arte moderna. Tentativa à primeira vista ousada, mas que surgiu-nos naturalmente, como uma forma de lidar com a grande quantidade de interpretações―estudadas, propostas, revistas―, e ainda que não fosse nosso objetivo uma visão artificialmente hierarquizada ou organizada, sentimos que o contato com as obras nos convidava a buscar essa “articulação”. Grande era o risco de nos perdermos, e já de início desencorajáva-nos a falta de um horizonte comum a ambos os artistas; foi nesse momento que veio-nos socorrer o gênio de José Ortega y Gasset, com uma rede suficientemente ampla e delicada chamada desumanização da arte: um texto “movido pelo prazer de tentar compreender sem ira nem entusiamo”, que nos indicava um caminho promissor: a impopularidade da arte moderna.