As múltiplas e contraditórias faces de uma época

Posted on 8/29/2008 by UNITED PHOTO PRESS

"A Renascença é a arte da beleza tranqüila. Oferece-nos aquela beleza libertadora que experimentamos como um bem-estar geral e uma intensificação uniforme de nossa vital força. Em suas criações perfeitas não se encontra nada pesado ou perturbador, nenhuma inquietação ou agitação - todas as formas se manifestam de modo livre, integral e sem esforço". Se o teórico da arte Heinrich Wölfflin, em seu clássico livro de 1888 "Renascença e Barroco", tem toda razão ao afirmar que a arte renascentista busca a perfeição, a questão da "ausência de inquietação" defendida por ele torna-se completamente relativizada ao se visitar a exposição "El Retrato del Renacimiento", atualmente em cartaz no Museu do Prado, em Madri. Traçando uma retrospectiva que cobre o período de 1400 a 1600, a mostra organizada em parceria com National Gallery de Londres - onde a exposição deve abrir em 15 de outubro - reúne 127 telas e esculturas de instituições como o próprio Prado, o Louvre e o Museu Nacional de Budapeste numa retrospectiva muito consistente que visa explicar de maneira bastante didática, sem ser maçante, como o gênero do retrato floresceu na Europa do pós-Idade Média. Dividida em sete módulos, "El Retrato del Renacimiento", traz para o Prado uma seleção de artistas fundamentais para que se compreenda o próprio conceito do Renascimento, entre eles Rafael, Tiziano, El Greco, Rubens, Jan van Eyck, Piero della Francesca, entre outros. A exaltação do indivíduo, umas das maiores características do período renascentista, favoreceu o desenvolvimento do retrato. "Ainda que se parecer necessariamente com os retratados tenha sido sua marca inicial mais importante, o retrato se converteu muito rapidamente numa realidade mais complexa, capaz de deixar evidente não apenas as características físicas dos indivíduos, mas também seu caráter, seu espírito, seus hobbies e seu status social por meio da introdução de recursos estilísticos sofisticados, símbolos e jogos visuais", escreve o curador, Miguel Falomir, chefe do Departamento de Pintura Italiana do Prado. Do teocentrismo medieval - que fez a arte se voltar exclusivamente para questões sacras, levando muitos pesquisadores equivocadamente a entender até os dias de hoje a Idade Média como a "Idade das Trevas" - a Europa se viu renascer antropocêntrica na virada do século XV com o restabelecimento do comércio e a volta do poder absoluto para as mãos dos monarcas, após séculos diluído nas diversas mãos dos senhores feudais. É neste contexto que não apenas artesãos ganham status de artistas, principalmente devido ao sistemático mecenato dos Médicis na Itália, mas também figuras "profanas" conquistaram o direito de ser retratadas, reestabelecendo uma prática muito comum do mundo greco-romano, como atestam inúmeros bustos da coleção do próprio Prado. No acender das luzes do Renascimento, é fato inegável, portanto, que a arte européia vise, por uma questão de afinidade filosófica do momento, uma aproximação com a cultura grega sempre em eterna busca dos ideais de beleza e do equilíbrio. Se esta beleza notada por Wölfflin é incontestável, a ausência de elementos "pesados" ou "perturbadores" na arte deste período pode ser facilmente contestada ao se observar as telas presentes na exposição do Prado. Criados inicialmente para serem guardados em camafeus e broches, como mostra uma exposição de 200 pequenas peças atualmente em cartaz no Museu Nacional de Arte Antiga de Lisboa, os retratos durante o Renascimento ganharam grandes dimensões e passaram a ocupar lugar de destaque nas paredes não apenas de monastérios e palácios, mas também nas residências de pessoas comuns . "Que tempo desgraçado é este em que até açougueiros e alfaiates são retratados", observou preconceituosamente, em 1545, o escritor veneziano Pietro Arentino, comprovando a popularização da arte de retratar no Renascimento. Esta democratização, no entanto, possibilita, como nota o curador da exposição, que o "retratista seja o primeiro pintor especializado da história", ao mesmo tempo em que a proliferação do gênero nas mais diversas classes sociais consegue exibir com destreza sutil diversas contradições de uma época em que a velha Europa insiste em querer se mostrar como plácida, iluminada e muito esclarecida. "Além de exibir as características físicas dos indivíduos retratados e suscitar no espectador uma reação de empatia, o retrato pretendia revelar as inquietudes intelectuais e as aspirações sociais dos retratados e indicar os modelos de conduta moral e religiosa a que os espectadores deveriam aspirar, dotando as telas de uma dimensão ao mesmo tempo sagrada e profana", diz Falomir. Num cenário em que o homem se percebe como "o centro do mundo" e as reformas e contra-reformas religiosas paradoxalmente atormentam os europeus, nada mais natural que figuras como a de Martinho Lutero seja uma das mais difundidas no universo do retrato renascentista, entre o séculos XV e XVI, ocupando não apenas quadros, mas também as páginas de inúmeros livros depois da invenção da imprensa. Por sua vez, se o retrato se populariza, o retratista ainda permanecerá durante muitos anos como uma profissão menor no universo das artes. Não por acaso, pintores respeitados como o alemão Albert Dürer se auto-retratarã no final do século XV vestidos como nobres e sem nenhuma referência na tela que faça menção a sua profissão. "A invenção do auto-retrato no início do Renascimento esteve ligado a questões de status. Nos séculos XV e XVI, a posição social de um indivíduo dependia de seu nascimento e sua ocupação", frisa o curador da mostra do Prado. Falomir também lembra que qualquer profissão que estivesse ligada a trabalhos físicos não era bem vista, o que era o caso da pintura, tida como uma tarefa não intelectual, mas física. "Somente quando Michelângelo afirmou que ‘se pinta com o cérebro e não com as mãos’", lembra o curador, que os retratistas (leia-se todos os artistas) passarão a se auto-retratar em seus ateliês ou com ferramentas que indicassem qual era seu ofício. Preconceitos e contradições à parte, a mostra do Prado tem o mérito de, apesar de reunir uma número significativo de retratos essenciais para a História da Arte, não querer definir com rigidez acabada, e portanto limitadora, o que seja o gênero. Partindo do questionamento estimulante do que é ou não um retrato, a curadoria selecionou as obras que permanecem em cartaz no mais famoso museu espanhol até o início de setembro. É neste cenário de mais dúvidas do que certeza para um gênero que até hoje marca as artes visuais que Miguel Falomir conclui: "O retrato foi um terreno propício para a experimentação e a reflexão em torno da própria pintura. Encontramos assim fascinantes jogos ilusionistas onde os modelos se projetam para além do plano pictórico, tornando-se retratos de retratos e, muitas vezes, ‘contra-retratos’ como as anamorfoses, onde as imagens se distorcem até tornarem-se paródias ou irreconhecíveis". No meio de tantas questões filosóficas que atravessaram os séculos, os retratos, contudo, permanecem até hoje como objetos de fetiche de toda a humanidade, provando a pertinência de uma exposição como a do Prado. El Retrato del Renacimiento Museu do Prado, Passeo del Prado, s/n. Terça a domingo, 9h/ 20h. € 8. Até 7 de setembro. A exposição abre em 15 de outubro na National Gallery, em Londres.