Pedro Cabrita Reis: um gato à caça

Posted on 7/04/2011 by UNITED PHOTO PRESS

Com uma toalha branca enrolada ao pescoço e uma garrafa de água na mão, Pedro Cabrita Reis circulava, trocava opiniões e dava instruções na passada terça-feira no espaço em montagem de ‘One after another, a few silent steps’. A grande retrospectiva, com cerca de 300 obras, ocupará, de forma inédita, todo o grande hall, no piso zero, do Museu Colecção Berardo (MCB).

Ele é uma figura central da arte portuguesa contemporânea. «Não tenho dúvidas que é um dos grandes artistas do nosso tempo», disse Jean-François Chougnet, o director do MCB que planeou e não assistiu (deixou o cargo em Abril) a este que é um grand finale para o seu mandato.

‘A minha escola sou eu’

Há um mistério que envolve Cabrita Reis, que vive semi-recluso dos circuitos, ausente dos cocktails, mas com uma presença subliminar e irradiante. Como uma Garbo. Ele é, como diz o chavão, incontornável. E carismático. Diz não se sentir incluído num movimento estético e pode dizê-lo, sem que haja vaidade pessoal envolvida nisso:«A minha escola sou eu». Aceita , porém, que outros estabeleçam ‘pontes’ e o metam em ‘correntes’.

A partir de segunda-feira, e até dia 2 de Outubro, esta obra única – apesar de tudo muito mal conhecida do público em geral («o que quer que isso queira dizer»), e até muitas vezes dada como exemplo de produtos de idiossincrasias de artista – está, agora, à mostra de todos.

A retrospectiva percorreu um périplo europeu de quase um ano (Hamburgo, Nîmes, e Lovaina) até aterrar aqui. As exposições tiveram montagens diferentes. A de Lisboa é a maior, com duas peças feitas de propósito, e exibe a obra do artista com grande generosidade, refira-se. Embora as suas peças de grande escala, quase do domínio da arquitectura (aliás, mais da arquitectura pobre, inacabada, rude, em reboco), não caibam no espaço de síntese de um museu.

«Apesar de tudo eu tenho um percurso maioritariamente fora de Portugal. A ideia desta retrospectiva é informar as pessoas deste tempo que foi passando, com várias obras que vieram do ateliê, da Gulbenkian, de Serralves, de diversos museus e de colecções privadas». E é uma oportunidade de o artista se libertar «nos próximos anos de fazer uma exposição». Para o público é o momento de ver um artista essencial que se mostra pouco.

«Não é um ritmo tão seco quanto isso», assegura. «Apareço em média a espaços de sete a dez anos, que é um tempo de reflexão e de maturação de trabalho. A coisa mais delicada de saber construir é o tempo da nossa relação com o trabalho e o tempo da relação com as pessoas que o vêem. Há artistas que têm uma enorme presença sobre o público, isso não me interessa muito». Uma das últimas obras ‘públicas’ em Portugal foi a peça feita para a exposição ‘Povo’, uma intrigante edificação em tijolo sobre um molhe, em cima do Tejo, à porta do Museu da Electricidade.

Trabalho infernal

«Já viram um gato à caça?» pergunta. É assim que trabalha: «Toda a importância está no acto da preparação. Um gato concentra-se e retrai-se antes de atacar. É como eu faço». Mas a comparação felina acaba aqui: «Tenho uma capacidade de trabalho infernal!», diz, explicando a sua rotina. «Não sou o artista de escritório das nove às cinco».

Todos os dias, no ateliê da Rua do Açucar, na zona Oriental de Lisboa, trabalha, estuda, fala com os assistentes – alguns estão presentes na exposição e nota-se a cumplicidade. «Há uma coisa que todos os dias faço: desenhar. E tenho toneladas de livros com notas, de coisas que nunca farei, de outras que vou fazendo. Estou sempre a trabalhar e isto não é uma blague artística. Tenho desprezo pelas blagues artísticas». Sem hobbies, interessa-lhe o amor e a praia: «Toda a minha energia moral, física e espiritual está concentrada no trabalho».

O nome da exposição também lembra esta atitude felina, passos silenciosos, um atrás do outro, como foi construída a obra. Mas o processo de montagem da exposição foi menos programado: «Primeiro aceitámos cair na armadilha de encontrar um sistema. Nos dois primeiros momentos da exposição estão as peças do início da carreira. Depois libertei-me disso, mas deixei estar essa parte cronológica, dos anos 80. Dá uma ideia muito compactada do que foi esse tempo. À medida que a exposição avança chega a haver peças próximas produzidas com hiatos de 20 anos, misturando pintura, desenho e escultura e que, no entanto, sem balizas cronológicas ou temáticas, criaram uma tensão e equilíbrio entre elas. E isso até é mais verdadeiro, no percurso de um artista».

Instalação, que é isso?

Pedro Cabrita Reis nasceu em 1956, estudou Belas Artes, fez a primeira exposição indiviual (ainda magríssimo) aos 25 anos, criou os interiores do Frágil, o célebre bar do Bairro Alto em Lisboa, foi um dos representantes de Portugal na Bienal de Veneza de 1995.

«Sou alguém que vem na sequência dos anos 70, os meus anos de formação são aqueles em que se começam a cruzar o minimalismo, a arte povera, conceptual, e, depois dos anos 80, quando começo a ter alguma visibilidade, começa a formar-se o meu trabalho e o que sou», apresenta-se.

Tipicamente caracterizado como autor de instalações (esse grande saco-azul de onde se tira tudo), Pedro Cabrita Reis chegou agora ao ponto de renegar categoricamente essa invenção do século XX tardio. «Uma instalação não existe porque precisa de relacionar-se com um espaço em concreto. E se a obra de arte tem que ter autonomia, então ela tem que ser entendida per se. Não vejo porque não usar as denominações clássicas: desenho, pintura e escultura».

No catálogo da exposição haverá apenas, assegura, obras referenciadas de acordo com a ortodoxia das artes plásticas. Uma afirmação de regresso à história da arte.
E olhando para trás, o artista, herdeiro dos anos 70, procura referências também muito longe. Na pintura, Caravaggio e Picasso, na escultura Medardo Rosso, Brancusi têm «um mistério sempre renovado».

Tijolo, lâmpadas, ferro

Nos últimos anos, além do suporte em tela (e dos recorrentes auto-retratos que lhe permitem «ir avaliando a relação com o mundo»), Pedro Cabrita Reis fixou-se em materiais que explora de forma inesgotável. Agora as suas peças reclassificadas como esculturas são feitas de tijolo, madeira de obras, cimento e lâmpadas fluorescentes, o que o transforma num construtor de sítios em bruto. Mas nunca usaria o plástico, afirma. «Os materiais têm todos uma temperatura, e a temperatura do plástico, por exemplo, não me interessa. Não tem a frieza do vidro e da lâmpada fluorescente, nem o calor do tijolo. É um material que não tem nenhuma carga de significado para mim». E, metáforas à parte, explica como nunca poderia trabalhar com o plástico que seduz gerações mais novas: «Sou do tempo em que se lavavam os sacos de plástico e se penduravam na corda da roupa a secar!».

Telma Miguel