GRANDE REPORTAGEM: ´O que dá as cartas´

Posted on 4/26/2011 by UNITED PHOTO PRESS

Descartes Gadelha, modelo para o personagem Oiti do livro
 "Lenda Estrela Brilhante: "Ele é pretinho e gorducho como eu"

FOTO: KID JUNIOR



O multiartista Descartes Gadelha está lançando o livro infantil "Lenda Estrela Brilhante", premiado no Edital. Com a delicadeza que lhe é peculiar, Descartes falou de beleza, lixo, prostituição, carnaval, arte, barcos, saúde e doença

Você está lançando mais um livro infantil "Lenda Estrela Brilhante". Que história é essa?
Esse livro é um pequeno depoimento disfarçado da minha vida. Porque fui engolido pelo carnaval ainda criança. Na minha infância, nossa Capital era recheada de eventos culturais não patrocinados pelo poder público. A cultura era nascida, produzida e fomentada dentro dos bairros. Todo calendário de festas e manifestações populares estava presente nessa cidade, era vivido de forma intensa.

Tínhamos São João da melhor qualidade. Lembro dos chamados "Caboclos da Parangaba" que, em novembro, saíam pelas ruas e distritos tocando e cantando para angariar fundos para a igreja, e muitos outros. Tínhamos os Pastoris que eram transmitidos ao vivo pela Ceará Rádio Clube e pela concorrente, Rádio Iracema de Fortaleza, os verdadeiros reisados, os autos de Natal e, dessa forma, eram os Maracatus.

Aos 10 anos tive contato com o Maracatu Estrela Brilhante e me contaminei com aquilo até hoje. Eu ia no meio do "canelau", porque as pessoas que não tinham dinheiro para sair no Maracatu, dançavam acompanhando a bateria, o batuque, lá atrás.

A ideia surgiu daí?
Pois bem. Eu, conversando com o Pingo (de Fortaleza), disse a ele que tinha vontade de prestar homenagem ao Estrela Brilhante. E ele gostou da ideia. Daí, escrevi, ilustrei e transformei em estilo de literatura infantil, até tentando dar um toque mais contemporâneo ao gênero. Porque, hoje, tudo está tudo muito ligado à robótica, à eletrônica, ou então, estão ainda nas Histórias da Carochinha.

Pensei em fazer algo atual, trazer a literatura infantil para temas do nosso cotidiano, tanto que aparece até o Ronda do Quarteirão. Mas, quando eu era criança, que morava na avenida Tristão Gonçalves, Fortaleza se dava ao luxo de ter ruas largas, com árvores plantadas ao longo delas, principalmente, oitizeiros, que é uma árvore bonita, frondosa, que dá frutos.

Percorria um quarteirão ou mais, de galho em galho, brincando com outras crianças. Comi muuuuito oiti, não queria nem comida de panela, e esse era meu apelido, porque eu também era pretinho e gorducho, eu era igual a um oiti! Daí o nome do personagem do livro.

Entre suas brincadeiras mais requintadas, estão as réplicas de veleiros. É mais uma paixão?
Estou proibido de pintar, por causa da doença, então... Mas os barcos são outra paixão, sim. Gosto de brincar de talhar barquinhos na madeira. Desde criança sou apaixonado por navegação à vela. É uma história cármica, algum vínculo reencarnatório.

Porque a paixão é tão grande que, ainda hoje, na idade em que estou, me imagino dentro do estaleiro, conversando com construtores e carpinteiros. É fantástico!

Penso em Camões, relembro as grandes navegações. As caravelas, como a internet, encurtaram distâncias, apesar dos barcos frágeis, à vela, sem motor, com alimentação precária. Quando estou na oficina cortando madeira, colando, fazendo uma velinha, me sinto navegando e digo: Deus, que maravilha ser uma eterna criança!

O senhor é pintor, escultor, escritor, músico, compositor. Tantos dons apareceram juntos?
Veja bem, nunca me considerei artista, acho uma palavra muito distante de mim, os outros é que dizem isso. Acho essa palavra muito pomposa, carregada demais para uma pessoa tão insignificante como eu. Sempre achei que artista era cowboy, o Tarzan, o Zorro, o Superman, mas não sou nenhum deles (risos). Mas, aos nove anos, eu já desenhava com perfeição.

Bastava olhar qualquer coisa, que desenhava nas proporções corretas. Recordo os pintores de letreiros, eram senhores profissionais que tinham suas oficinas de pintar. E tinham muito trabalho, porque em Fortaleza tinha o Cine Diogo, Cine Moderno, Cine Majestic, Cine Rex, Cine Luz. Certa vez, um desses homens me viu pintando caricaturas nos muros próximos à Estação Central Ferroviária Professor João Felipe, eu morava por ali.

E disse: ´você sabe desenhar mesmo, garoto? Pois desenhe aí um Rocky Lane. Eu sabia quem era o cowboy americano, porque lia muita história em quadrinho. Ele queria grande e colorido e me deu uma foto pequena e em preto-e-branco.

Eu me trepava num banco e desenhava. Eles me pagavam com a coisa mais encantadora e maravilhosa da vida, que era chocolate. Por isso tenho problemas de intestino. Comi chocolate demais (risos). Mas, o impulso artístico é um só, seja para fazer uma loa ou uma escultura.
Como está sua saúde?
Há cerca de dez anos descobri o câncer. Já fiz várias cirurgias, até perdi a conta. Porque o câncer que tenho é turístico, ele quer fazer uma viagem pelos meus órgãos. Apareceu na próstata, foi para o intestino, passou pelo pulmão, e assim vou eu, diminuindo de tamanho, fazendo uma "lipo-órgão".

Enquanto aparecer o que não presta, vou tirando. Ainda estou me tratando, porque são vários cânceres. Esses dias o médico me abriu, tirou metade do meu pulmão e fiz seis meses de quimioterapia. Quando terminou, apareceu outro no outro pulmão. Daí perguntei ao médico se já podia ir preparando meu escafandro (risos).

Ainda bem que já fui mergulhador... Vou mandar buscar um Aqualand. E olhe que nunca fumei, nunca me droguei, sempre fui atleta, fiz luta livre, boxe, karatê, fui campeão de natação (mostra os músculos do braço), tenho pescoço grosso e corpo forte. É cármico mesmo. Só agora entendo que estava me preparando para receber esse amigo que ia redimir minhas traquinagens de outras vidas. Fica fácil entender mergulhando nessa compreensão.

Então, pela lei do espiritismo, o senhor acredita estar em um processo cármico?
Carma significa cumprir o compromisso, mas sua compreensão é ampla. Tudo o que ocorre está registrado dentro desse processo, ele é nosso código de barras. Carma é a regra. Quem traça nosso destino somos nós mesmos. Só que esse traçado obedece regras sociais interplanetárias, cósmicas.

Estamos passando por mudanças. O planeta está se corrigindo, está mudando seu eixo para uma determinada combinação cósmica com outras dimensões. Ele tem que se ajeitar, é uma questão de evolução. O processo é renovador, nada é destrutivo. Se não fosse assim, os dinossauros ainda estariam por aqui.

Quando a natureza criou o espírito, foi para ser um coadjuvante de Deus, um colaborador, um trabalhador, um auxiliar, que, no Candomblé corresponde ao Ogan. Somos Ogans de Deus, de Olorum, que é como os africanos chamam Deus.

O planeta é um grande centro de Candomblé, onde todos estamos trabalhando para Deus. Ainda não existe uma forma de ensino que transfira esse conhecimento de forma convencional, racional, programática. Mas um dia vai acontecer. Imagine uma faculdade que forme doutores em "Ogan de Olorum", que maravilha isso! O mundo seria outro.

Saúde, ou a falta dela, fazem parte dessa evolução?
Tudo faz parte da evolução. A maior glória da minha vida é o processo dessa doença. Foi a forma mais abençoada, acho essa palavra "bênção" tão meiga, de eu crescer, foi um presente de Deus. Mas só compreende o que estou falando quem tem um. O câncer é uma correção, a gente fica cada dia mais elastecido, iluminado, conhecedor e ciente da responsabilidade cármica.

O senhor tem uma longa trajetória ligada à música percussiva. Como é essa relação?
Não sou músico, sou animador de brincadeiras e utilizo as músicas que faço, que são ruins, tortas, cheias de nós pelas costas, para brincar. E as pessoas também encomendam: "Descartes, tem uma loa aí sobre tal assunto?". No telefone mesmo rabisco e faço. Ela vem como se eu fosse apenas o instrumento. Não sei quantas composições tenho, não faço ideia.

Outro dia encontrei uma loa, que fiz em 1958, sendo cantada no mercado, porque lá sou freguês de panelada. Aliás, é lá que me curo da quimioterapia. Saio do médico e vou comer panelada com cuscuz. O "cancervéi" chega fica acuado quando a panelada bate nele... Mas, voltando, se contar de 1957 para cá, se eu tiver feito 20 músicas por ano, devem existir por aí mais de 300 músicas circulando. Mas nunca gravei nem anotei nada. Outro dia o Pingo gravou um CD de loas, mas a pretensão é só documental. Não tenho veleidades de ser músico ou compositor.

O senhor é conhecido por encontrar beleza onde, aparentemente, não existe. Prova disso é seu trabalho no lixão do Jangurussu. Fale desse período.
Acho que nenhuma beleza me atrai, a natureza é tão bela, que detalhes estéticos e superficiais não me seduzem. Certa vez, queria pintar um pôr-do-sol. Coloquei no carro material de pintura, cavalete, telas, tintas e peguei a BR-116, que naquele tempo ainda era estreitinha, sem viadutos, sem nada. Fui andando sem rumo, entrei num beco, me perdi, mas encontrei um céu de cor linda. Só que quando comecei a desenhar, tinha um mau cheiro que incomodava muito.

Mudei de lugar, levei o material para mais longe, e nada de passar o cheiro de azedo. Daí, ia passando um garoto com um saco na cabeça e eu perguntei de onde vinha aquele cheiro horrível e ele apontou para detrás de um morro ao lado. Subi lá e presenciei uma das cenas mais chocantes da minha vida, o verdadeiro "inferno de Dante". Era o lixão do Jangurussu e lá estavam dezenas de pessoas buscando sua sobrevivência naquele chorume podre.

A princípio chorei muito, fiquei paralisado. Mas, nessa mesma noite voltei e tive um surto recolhedor de almas. Encurtando a história, a partir desse dia, passei um ano e meio em cima do lixão, desenhando e pintando até na luz de candeeiro. Peguei todo tipo de doença que se pode imaginar, mas também fiz muitas amizades e muitos retratos. Só parei quando não aguentei mais.

Falando em beleza, várias obras suas têm como tema a prostituição...
Aos 20 anos, mergulhei fundo na prostituição. Fui para o Centro da cidade e lá tinham as madames, as pensões, os grandes cabarés e o Zé Tatá, que era a parte terminal, que ficava no lugar chamado "Curral". As prostitutas tuberculosas, com sífilis, acabavam lá. O Zé Tatá era penúltima etapa da decadência social e moral da mulher que perdeu a virgindade no interior.

Presenciei tudo isso e passei a fazer leituras pictóricas desses ambientes. Durante muitos anos, em diferentes períodos, morei em vários cabarés, de mala e cuia. Porque você só faz uma boa matéria jornalística se tiver contato pessoal com seu entrevistado.

Aprendi a respeitar as prostitutas como seres superiores. Porque uma pessoa que apanha na cara e abaixa a cabeça, é um ser superior. Foram centenas de pinturas, desenhos e gravuras, acho que fiz uma espécie de doutorado e pós-doutorado na universidade "prostitucional". Eu sei tudo desse mundo que não existe mais. Vi muita coisa bela e muita coisa triste.

E agora, quais são os planos?
Ser melhor do que fui ontem, é só isso que desejo da vida. Fazer o menor mal que puder à natureza e às pessoas que convivo. Estou focado nisso.

NATERCIA ROCHA
REPÓRTER