Photojournalist & member of the United Photo Press, Àlex Burgaz captures
life on the world's streets for 45 years with over 20,000 photographs
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A photograph of Plaça Catalunya in Barcelona, taken on June 14, 1979, marks
the beginning of 'Street Stories'. This project comprises over 20,000
photog...
This Is It Michael Jackson ?
Posted on 10/28/2009 by UNITED PHOTO PRESS
Nunca vamos chegar a saber o que teria sido This Is It ao vivo, tal como nunca vamos chegar a saber quem era ele: Michael Jackson. A estreia mundial de This Is It, o filme póstumo, é hoje. Em Portugal, até ontem, 19 mil pessoas tinham comprado bilhetes para assistir aos últimos dias do ambíguo rei sem cor nem sexo, que, afinal, tinha 50 anos e era humano. Ele nunca foi completamente nosso - uma supernova nunca é completamente nossa: era esse o seu mistério.
Norman Mailer, osso duro de roer pelo tempo, tinha ideias claras sobre aquilo a que um dia nos habituaríamos a chamar "síndrome de Peter Pan": "Havia aquela lei da vida tão cruel e tão justa que exigia que tivéssemos que crescer ou pagar mais por permanecer iguais."
Foi em 1955, quando acabáramos de inventar o conceito de "adolescente" e faltavam anos para que começássemos todos a recusar-nos a ser adultos, palavras de O Parque dos Veados, retrato tirado à corrupção de valores entre os pântanos desse bizarro planeta chamado Hollywood.
Hollywood, a fábrica de todos os sonhos e pesadelos americanos. A duas horas de carro mais para norte, uma prisão de cristal isolada entre quilómetros de campo, com lagos e piscinas, carrinhos de gelado e algodão-doce, parques de diversões e guaridas para animais exóticos: Neverland, a Terra do Nunca inventada por alguém que acabaria por nos dar a conhecer a dimensão exacta da factura a saldar.
Michael Jackson foi um pequeno querubim negro que viveu na era Motown, capaz de invocar sentimentos e gestos de adultos através do corpo de uma criança. Foi um fantástico e tímido rapaz-prodígio de graciosidade e delicadeza raras, bailarino extraordinário capaz de nos olhar com toda a doçura, ao mesmo tempo que se agarrava ferozmente às rédeas da criação da sua própria era. Foi um fulgurante jovem rei sem tempo, cor nem sexo, de rosto cinzelado como um ícone, sorriso encantador e voz de soprano cristalino, capaz de levar milhões à histeria, homens e mulheres a cair em lágrimas por apenas lhe tocar.
Michael Jackson foi um poderosíssimo mas frágil recluso, de identidade mutante, com os braços cheios de prémios, a esconder-se sob holofotes e uma muralha de excentricidades. Foi um talento super-humano, ou seja, mais humano, idiossincrático e vulnerável do que o permitido. Foi um ser acossado por fantasmas, ridicularizado, preso entre a ambiguidade das quatro paredes de vidro da fama, a tentar espreitar lá para fora, enquanto o mundo inteiro colava o nariz à montra a tentar ver lá para dentro. Foi um mito em perda tornado freak show, a imagem cada vez mais distorcida que nos era devolvida por um espelho cada vez mais estilhaçado.
Michael Jackson foi uma patética máscara de alienação, dor e morte. E quando, por fim, uma inabalável multidão de fãs esperava vê-lo renascer das cinzas e o resto do mundo se preparava para abrandar o carro e torcer o pescoço a assistir de passagem ao pior acidente rodoviário de sempre, voltou a desaparecer pela porta dos fundos.
Michael Jackson morreu a 25 de Junho, quando faltavam menos de três semanas para o início daquela que estava anunciada como a sua última série de concertos de sempre - uma arriscadíssima vertigem de 50 apresentações na 02 Arena, em Londres, com 800 mil bilhetes vendidos; a sua primeira grande apresentação em 12 anos, desde a HIStory World Tour, de 1996-1997, depois da qual actuara apenas em 2001, em dois concertos comemorativos dos seus 30 anos de carreira a solo, no Madison Square Garden, em Nova Iorque.
Em crescendo
Foi uma saída dramática, à medida da imagem que ele tinha de uma grande estrela. Ele, que tão bem conhecia a importância da ocultação como ferramenta de ancoragem no imaginário colectivo, desaparecia em mais uma nuvem de dúvida: nunca vamos saber o que teria sido This Is It ao vivo - apenas o que fizeram de This Is It num filme póstumo realizado a partir de mais de 100 horas de registos de ensaios.
Durante o encenadíssimo crescendo dos últimos meses, a culminar na estreia mundial de hoje - em Portugal, até ontem, havia 19 mil bilhetes adquiridos em pré-venda, como se fosse um concerto -, não houve antestreias nem visionamentos para imprensa. Como (quase) sempre no que toca à vida profissional de Michael Jackson, cada passo foi meticulosamente planeado de forma a pavimentar, milímetro a milímetro, o caminho até uma esperada apoteose.
Vimos o que nos quiseram dar a ver. Gota a gota. Primeiro ele de fato cinzento anódino à frente de um corpo de bailarinos na coreografia de inspiração militar do polémico They don''t care about us (1996), gravado com o grupo de percussão baiano Olodum, videoclip rodado na Rocinha, a maior favela do Rio de Janeiro.
Foi o primeiro registo a aparecer on-line de uma série de teasers que entreabriram a janela só o suficiente para ficarmos sem certezas - a não ser as que já tínhamos: que nas primeiras semanas de Junho Michael Jackson estava vivo, em palco.
A acreditar que o alinhamento de This Is It, a banda sonora, corresponde à ordem prevista de This Is It, o concerto, They don''t care about us, seria o terceiro momento, depois do arranque com Wanna be startin'' somethin'', composto durante Off The Wall (1979), mas lançado apenas com Thriller (1982). Daí até ao fim, haveríamos de reconhecê-lo em tudo, claro: o tom confessional e melódico, por vezes sacarino e soluçante de Human nature (1982), Man in the mirror e I just can''t stop loving you (1987); a narrativa noir e o registo sincopado de Smooth criminal (1987), com as possibilidades cénicas do seu Girl hunt ballet, Fred Astair e Cyd Charrise revistos, e o impossível Lean, o famoso passo de dança antigravidade, com o corpo a inclinar-se para a frente a 45 graus, o mais conhecido depois do moonwalk, o back-slide que caiu como um meteorito no final da interpretação de Billie Jean do 25º aniversário da Motown, em 1983, a estreia, também, do chapéu fedora preta com luva branca.
A Rolling Stone diria: "Aquele foi o momento que cristalizou o estatuto de celebridade de Michael Jackson." O mesmo Michael Jackson que acabara de se tornar no primeiro afro-americano com um vídeo na MTV e que pouco depois estaria a redefinir o que era essa mesma MTV, a arrecadar oito Grammys de uma só vez e a entrar para o Guinness com o álbum mais vendido de sempre - Thriller, mais de 104 milhões de cópias -, reconfigurando para lá do que parecia provável as fronteiras dos géneros, um mainstream pop feito de soul, funk, R&B, rock...
É tão fácil perceber como tem sido fácil esquecer o que ficou para trás que fez com que nas horas que se seguiram ao anúncio da morte se tenham ouvido rappers do mais duro lamentar de voz embargada e lágrimas nos olhos o desaparecimento do mesmo homem que nos últimos tempos só parecia ser-nos vendido como réu, mas que ainda havia quem defendesse como um dos primeiros a preparar o caminho para o mundo de Tiger Woods e Obama.
Quase toda a gente deve qualquer coisa a Michael Jackson e a esse seu lugar imaginário onde a ficção se misturou de tal forma com a realidade que nunca ninguém poderá estabelecer os limites de uma e outra.
O mestre
Na altura em que anunciou a realização de This Is It, o filme, Kenny Ortega, diria: "Quando começámos a reunir as imagens, percebemos que tínhamos captado qualquer coisa de extraordinário. É um olhar muito privado e exclusivo sobre o mundo de um génio criativo. Os fãs vão ver Michael como nunca antes - um grande artista em acção. É um registo cru, emocional, comovente e poderoso que capta a sua interacção com os colaboradores de This Is It que ele reuniu pessoalmente. Mostra um performer consumado a trabalhar com e a guiar os cantores, bailarinos, músicos, coreógrafos, especialistas de efeitos especiais. Consigo pensar em muitas palavras para descrever Michael, à medida que ensaia e cria This Is It - inspirador, dinâmico, generoso, dedicado, carinhoso -, vemo-lo como verdadeiro arquitecto e força motriz deste projecto - um verdadeiro mestre do seu métier, o entertainer dos entertainers. Um raro retrato de Michael enquanto se preparava para a sua última chamada de cena, para aquilo que eu acredito que seria a sua obra-prima."
Todos os que se aproximaram de Michael Jackson e saíram de lá sem nada a perder e com um registo em punho prometeram, desde sempre, olhares únicos, esclarecedores e privados.
Num dos raríssimos clips não oficiais que apareceram na Internet, vemo-lo concentradíssimo, perfurante, a mastigar freneticamente pastilha elástica num casting para bailarinos - talvez o tubarão dos negócios de que alguns falavam -, mas vemo-lo também constantemente a puxar o cabelo sobre a cara já escondida atrás de óculos escuros - sempre autoconsciente, sempre desconfortável na própria pele.
Num dos depoimentos incluídos em This Is It alguém menciona o perfume e a luz da sua presença em palco como que a falar de qualquer coisa de divino, o mesmo palco onde o vemos uma e outra vez, magríssimo, de rosto encovado, numa parada de figurinos, umas vezes a usar o insuportável falsetto que assumia como a sua "voz pública", outras no soprano mais profundo e masculino que constava ser a sua "verdadeira voz".
Alguém escreveu um dia que, quando começou a transformar o seu rosto, com uma identidade sexual cada vez mais ambígua, Michael Jackson deixou de ser corpo, passando a ser só alma. Em Junho, num especial Remembering Michael, em que recordou a célebre entrevista de 1993, Oprah falaria da doença que a maior parte do mundo nem queria acreditar existir - vitiligo - e de como foi estranho "olhar para uma pessoa que é quase translúcida", "através da qual se vê até às veias azuis".
Ela, uma das mulheres mais conhecidas da América, recordaria a sensação do "quão solitário era aquele sítio lá em cima, no topo". Foi a entrevista em que lhe perguntou, sem resposta, se ele era virgem, e também se estava satisfeito com o seu aspecto. À última questão ele respondeu com convicção: "Nunca estou satisfeito com nada, sou um perfeccionista. É quem eu sou." Foi a mesma entrevista em que explicaria como um erudito de profundidade insuspeita: "Acredito que toda a arte tem como objectivo máximo a união entre o material e o espiritual, o humano e o divino, acredito que essa é a razão da própria existência da arte. Acredito que fui escolhido como instrumento."
No memorial do Staples Center de Los Angeles, Brooke Shields voltou, anos depois, para falar, em lágrimas, num ser "carinhoso, divertido, honesto, puro" e para esclarecer nunca ter percebido completamente o cognome de rei escolhido para alguém que lhe fazia pensar mais no Principezinho de Saint- Exupéry. Queen Latifah leria um texto da actriz, bailarina, poeta e activista de direitos civis Maya Angelou, intitulado We Had Him ("nós tivemo-lo"): "Agora sabemos que não sabemos nada, agora que a nossa mais brilhante estrela nos pôde escapar da ponta dos dedos. No momento em que sabemos que Michael se foi, sabemos que não sabemos nada. Ele foi uma dádiva e nós tivemo-lo.
Deu-nos tudo o que lhe tinha sido dado." Percebe-se a escolha de palavras. Porque ele nunca foi completamente nosso - uma supernova nunca é completamente nossa: é esse o seu mistério, a sua magia. Para o termos seria necessário o Algoritmo de Deus, aquele que permite solucionar mais depressa o cubo mágico.