MUSEU DO CARAMULO - A paixão de coleccionar retalhos da história automóvel

Posted on 10/03/2008 by UNITED PHOTO PRESS

Dois irmãos, Abel e João de Lacerda, fundam nos anos cinquenta, um invulgar museu, numa pequena povoação chamada Caramulo, situada numa montanha no centro de Portugal, com luxuriante vegetação, virada a Sul, sobre um vale extenso de 80 km: o mais vasto panorama do país.
Abel de Lacerda, apaixonado pela arte, constrói um edifício, com os mais modernos conceitos de museologia, para expor uma invulgar colecção de objectos de arte constituída por 500 peças de pintura, escultura, mobiliário, cerâmica e tapeçarias, que vão da era Romana até Picasso.
João de Lacerda tinha como paixão os automóveis por isso constrói outro edifício, anexo ao primeiro, vocacionado para expor 100 viaturas de quatro e duas rodas, dentro do princípio de que todos os veículos pudessem sair facilmente, para exibição e conservação.
Com a morte prematura de Abel de Lacerda em 1957, criou-se a Fundação Abel de Lacerda, hoje Fundação Abel e João de Lacerda, proprietária dos dois museus de Arte e Automóveis, abertos ao público todo o ano. Mais de 1 milhão de visitantes entraram neste meio século, no Museu do Caramulo.

O Mercedes blindado que Salazar recusou

Uma das viaturas em exposição, e uma das mais importantes da colecção do museu é o Grosser W07, da Mercedes-Benz, produzido pela marca alemã entre 1930 e 1938, na época era o maior e mais caro modelo da Mercedes.
Das 117 unidades que saíram da fábrica de Unterturkheim, 42 tinham uma carroçaria pullmann blindada. O imperador japonês Hiroito adquiriu três e, em 1938, o Estado português encomendou dois ao agente da Mercedes em Portugal, a Sociedade Comercial Mattos Tavares.
Os dois automóveis foram matriculados em Portugal em Junho de 1938, em nome da Polícia de Vigilância e Defesa do Estado (PVDE), a antecessora da PIDE, tendo sido postos à disposição do Presidente da República, general Óscar Carmona, e do Presidente do Conselho de Ministros, António de Oliveira Salazar, como medida de segurança face ao atentado bombista contra Salazar no dia 4 de Julho de 1937, na avenida Barbosa do Bocage, quando o ditador se deslocou, como habitualmente, à missa no Buick que utilizava.
O Presidente do Conselho não foi ouvido sobre a compra dos veículos, manifestando o seu descontentamento, continuando a utilizar o Buick, enquanto que o Mercedes era utilizado pelo motorista Raul para transportar visitas ao palácio de São Bento, só tendo sido utilizado em cerimónias oficiais para transportar o Generalíssimo Franco, por ocasião da sua visita a Portugal em 1949.

Adquirido pelos bombeiros

Em 1955, o conta-quilómetros acusava apenas 6 mil kms quando o Mercedes foi vendido em hasta pública, sendo adquirido pelos Bombeiros Voluntários do Beato e Olivais, que tencionavam transformá-lo em ambulância. O custo da transformação era elevado, e por isso o projecto foi colocado de lado, tendo sido comprado em Junho de 1956 por João Lacerda, para ser exposto no Museu Automóvel do Caramulo, onde ainda pode ser admirado, quer na sala de exposições, quer mesmo nos arruamentos para onde sai algumas vezes para rodar e preservar a mecânica.
Quando chegou ao Caramulo, não necessitou de qualquer restauro. A pintura, os cromados, os estofos em couro e até os pneus estavam em perfeitas condições. Por isso, é considerado um dos exemplares do Grosser W-07 melhor preservados em todo o mundo.

Peugeot 19 de 1899

Trata-se do mais antigo automóvel português em condições de circulação e pode ser igualmente apreciado no Museu do Caramulo. O Peugeot 19 foi uma das paixões de João Lacerda, e compreensível, pois é um raro exemplar.Crê-se que a Peugeot terá produzido apenas 75 unidades do modelo 19 entre 1897 e 1902. Na época eram automóveis sofisticados, equipados com motores traseiros de 5 e 8 hp, e robustas rodas de raios, feitas da experiência da marca na produção de bicicletas e triciclos.
Em 1963, João Lacerda descobriu um destes modelos (produzido em 1899), com uma carroçaria “Victória”, nos armazéns que a Câmara Municipal de Lisboa tinha na Avenida da Índia.
Pouco sabia sobre este automóvel, que se pensa terá sido um dos dez primeiros a ser importados para o nosso país, embora se desconheça o nome do primeiro proprietário.
Tinha sido desprovido de todos os órgãos mecânicos, e estava inventariado como “carruagem”. A sua compra só poderia ser feita em hasta pública, um processo que demorou cerca de dois anos. Mas, em 1965 foi incluído na lista de objectos a ser vendidos pela edilidade, tendo sido adquirido por João Lacerda por 5250$00, um valor que surpreendeu muito boa gente porque o Mercedes Blindado de Salazar havia sido vendido ao mesmo por 6000$00.
O restauro foi um longo trabalho de paciência. Durou doze anos, ao longo dos quais foi adquirido em França um motor da época, que teve de ser reparado. Mas o mais difícil foi conseguir a autorização do Museu Henri Malartre de Rochetaillée para desmontar uma caixa de velocidades para conseguir realizar os moldes e desenhos para as peças que foram fundidas em Portugal, onde também foi construído um radiador em serpentinas de cobre e o aparelho de lubrificação gota-a-gota, para já não falar nos pneus que a Michelin produziu de acordo com os planos da época.
Renasceu, assim, o Peugeot 19, que é o mais antigo automóvel em condições de circulação no nosso país, estando registado no ‘Veteran Car Club of Great Britain’ desde 30 de Abril de 1975.
Em 1977 e 1988 alinhou à partida do Rali Londres-Brighton, tendo percorrido os 100 km entre as duas cidades sem quaisquer problemas. Hoje, apesar dos seus cerca de 110 anos de idade, continua a sair regularmente pelos arruamentos do Caramulo, para conservação mecânica.