Arte em trânsito

Posted on 10/14/2008 by UNITED PHOTO PRESS

A uma edição para fechar seis décadas de atuação, o Salão de Abril vem com o tema arte: desejo e resistência, invade terminais de ônibus da cidade e coloca em discussão a relação do público, obra e artista.

Escorados num banco do bosque, dois Marcos, um Vinícius da Silva e o outro Fábio de Souza, observam o movimento atípico enquanto tiram uma pausa da limpeza do Terminal do Siqueira. "Eu não sei o que é isso não, mas parece que é arte, né? Que vão trazer pro terminal", comenta a rabo de olho o Marcos Vinícius, apontando para a cola, tinta, escada cavalete e amontoado de papéis. "É bom que a gente aprende o que é arte, né?", responde o outro. Aglailson Araújo, porteiro de um edifício, chega perto e olha tudo com desdém. "Pois eu acho que meu irmão pequeno faz isso aí em três tempos, e fica mais bonito". No domingo, 12, a tarifa social e o Dia das Crianças entupiram o meio-dia do Terminal do Siqueira qual horário de pico de segunda-feira. Na mesma hora, chamavam a atenção dos usuários as primeiras obras prontas do 59º Salão de Abril. O evento pega dois dos pontos de integração do transporte público da cidade, do Siqueira e do Papicu, além do Centro de Referência do Professor (CRP), no Centro, para servir de lugar de exposição. Lambe-lambe de gente de boca aberta chamando um grito, fotografias, pinturas, instalações de parede e esculturas. Até o dia 23 de novembro, 20 dos 45 artistas selecionados de vários estados do Brasil terão seus trabalhos às vistas de parte das 480 mil pessoas que utilizam diariamente os dois terminais, além dos trabalhadores do espaço que conviverão diariamente com as obras.

"Todas as obras causam estranhamento", aponta Maíra Ortis, curadora geral do evento e coordenadora das Artes Visuais da Secretaria de Cultura de Fortaleza (Secultfor). Com o tema Arte: Desejo e resistência, a inquietação do Salão pode vir de um diferencial. O evento apostou em pôr nos terminais obras pensadas para uma galeria e não somente aquelas feitas para exposições nos ambientes públicos das vias. Maíra julga que os trabalhos de rua já estão em vários espaços, por isso, as pessoas já estão habituadas. Daí a minimização do seu impacto. "Muitas das obras do salão não compõe cotidianamente aquele ambiente. Geralmente, estão num lugar que intimida, os museus. Mesmo nos gratuitos, muita gente não entra, achando que aquele não é lugar para ela, tem medo de ser expulsa", explica a curadora. Agora, a história é diferente. São as obras que não passam despercebidas e entram nos lugares já ocupados pelas pessoas nos seus percursos cotidianos. Obras e o ambiente Algumas das obras foram re-significadas pelo ambiente. Espelho Meu, trabalho de Gentil Barreira, por exemplo, traz um homem e uma mulher em fotografias espelhadas e estão vizinhas aos respectivos banheiros masculino e feminino. Nas paredes que cercam o terminal, as colunas servem de moldura às colagens de desenhos feitos em jornal pela artista Ise Braga. Dois boxes no terminal do Papicu estão enfeitados por pinturas.

A escolha dos trabalhos alocados nos terminais, segundo Maíra, ficou ao critério das obras que pudessem ser expostas às condições climáticas. Uma gravura que não fosse reprodução, por exemplo, correria o risco de se desgastar. As obras que requeriam mais cuidados foram postas no Centro de Referência do Professor. As de materiais mais resistentes e ainda as obras perenes, recebidas nos terminais. Ainda assim, o discurso de dar acesso a arte à população que não freqüenta o museu não foi comprado tão facilmente por todos os artistas. Maíra Ortis conta que alguns deles não gostaram da idéia de expor nos terminais, temerosos que suas obras se desgastassem ou sofresse algum tipo de intervenção da população. Depois de um processo de negociação, algumas obras foram transferidas, apesar de constar no edital que a escolha dos lugares previstos, o CRP e os terminais, seria a critério da comissão organizadora. Segurança para as obras "Se não tiver ninguém vigiando, isso num dura 24 horas", observou, a passos ligeiros, um dos guardas municipais do terminal. Por não serem trabalhos feitos para a rua, as obras exigiram segurança. Rapazes grandes e largos, contratados de uma empresa terceirizada de segurança, estarão 24 horas a postos para garantir a integridade dos trabalhos.

A gente passava, se aproximava ou olhava de longe. Muitos com indiferença, outros com curiosidade. Tinham vontade de tocar. "Não pode!", gritou um dos seguranças quando um rapaz quis pôr o dedo em Filateista, trabalho da artista paulista Heloísa Etelvina, um emaranhado de 3600 selos fictícios. "Eu falei que não podia pegar, cara! Entendeu, ou quer que eu desenhe?", aumentou mais ainda a voz o segurança com a insistência do rapaz, enquanto, igual a um galo que canta, inflava o peito. O rapaz murchou e saiu. A cena, ocorrida enquanto a repórter entrevistava Maíra Ortis, deixou quem estava perto temeroso de chegar perto das obras. "Olha só, isso não pode acontecer, o seu papel é de proteger e informar", foi explicar a curadora ao segurança. "É uma questão de cultura e vem dos próprios seguranças, que muitas vezes não têm seus papéis explicados. A população também não está habituada com as obras de arte e como esse é o espaço delas, é natural que queiram tocar, queria agir como costumam fazer", aponta Maíra.

A curadora diz que o Salão passará por uma prova de fogo, a tentativa de orientação, sem intimidar os visitantes/passantes. Enquanto nem todos os trabalhos eram montados, um deles chamava mais atenção. Sem título (Fora de Prumo), uma fotografia feita em câmera pinhole. O cobrador de ônibus Nilton Souza Carvalho chegava para o serviço e deixou-se demorar. "É a Ponte Metálica. Ela traz o mar para a periferia. Nesse ponto aqui, ó (aponta), eu tomava era muito banho. Tem uns pregos retorcidos, mas bem daqui dá para pular". SERVIÇO 59º Salão de Abril. Abertura hoje, 14, às 19 horas, no Centro de Referência do professor (rua Conde D'eu, 560 - Centro). Exposições até 23 de novembro. Visitação: Segunda a sexta, das 8 às 20 horas. Sábado, das 8 às 15h30min. Nos terminais do Siqueira e Papicu, diariamente, sem limite de horário. Informações: 3105 1358/ 3246 2708 ou pelo site http://www.salaodeabril.org/. Todas as atividades têm entrada franca. EMAIS! - Dos 45 artistas selecionados, 19 são cearenses. - A programação inclui oficinas, mini-cursos e entrevistas. O aspecto formativo do Salão inclui outros espaços de encontro, como a Vila das Artes, o Sobrado Dr. José Lourenço e o Centro Cultural do Bom Jardim. - Em destaque na programação a realização, no dia 18 de outubro, da palestra com o professor Paulo Oneto, do Rio de Janeiro, com o tema Arte: Desejo e Resistência - uma abordagem do tema do Salão a partir da filosofia estética, no Sobrado Dr. José Lourenço. - Ainda em outubro, estão marcadas entrevistas com artistas locais e nacionais. Nos encontros, perguntas serão direcionadas às personalidades convidadas, com o objetivo de fomentar na platéia o desejo por intervir no discurso do palestrante. Os entrevistados de outubro são: Paulo Burscky (do Recife), em bate-papo sobre A arte contemporânea e o artista multimídia, no dia 16; Tiago Santana (de Fortaleza), em conversa sobre sua obra fotográfica, no dia 19; e Humberto Cunha (também de Fortaleza), no dia 30, sobre Direito autoral do artista plástico. Todas as entrevistas acontecerão na Vila das Artes. - A programação conta ainda com dois mini-cursos e duas oficinas, respectivamente: Pintura Contemporânea e O ensino da arte contemporânea; e Argila e Desenho. É necessário fazer inscrição.